Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Reação marcada pela hipocrisia


editorial
O Estado de S. Paulo
11/1/2007

Pecaram por hipocrisia as primeiras reações do governo brasileiro à reestatização de empresas de energia e telecomunicações na Venezuela, anunciada segunda-feira pelo autocrata Hugo Chávez com a fanfarronice de sempre, como uma espécie de inauguração do “socialismo do século 21” - o socialismo bolivariano. A hipocrisia está contida no argumento de que o Planalto não pode emitir “qualquer juízo de valor” sobre o traumático episódio, como afirmou o ministro de Relações Institucionais, Tarso Genro, porque, emendou o assessor internacional da Presidência, Marco Aurélio Garcia, “se trata de assunto interno venezuelano”. Primeiro, nenhum ato do caudilho Chávez deixa de ter um objetivo externo desde que ele se outorgou o papel de líder da luta da América Latina contra o imperialismo norte-americano. Segundo, no único assunto político realmente interno da Venezuela de Chávez - a eleição presidencial - o presidente Lula em pessoa se imiscuiu, sim, ao subir ao palanque de Chávez em Ciudad Guayana, em novembro passado, para pedir ao povo venezuelano que reelegesse seu amigo, ouvindo como resposta o coro “Lula, Lula”, de 20 mil pessoas. Agora, o Planalto reage ao anúncio da estatização com a declaração do assessor Garcia, de que “o Brasil é amigo de Chávez e ele é nosso amigo também”, acompanhada de tímidas ressalvas de fontes do Itamaraty, que sintomaticamente pediram para não ser identificadas, no sentido de que a socialização dos meios de produção pode ser vista como alternativa na Venezuela e na Bolívia, mas essa não é a receita adequada ao Brasil.

Mas, queira ou não, o governo não poderá continuar olhando para o outro lado à medida que Chávez enveredar cada vez mais no rumo de decisões extremadas, de inequívoca matriz ditatorial, já não se limitando ao radicalismo retórico. A menos que a Lula não inquiete a perspectiva de que o Brasil passe a ser visto nas mais importantes capitais estrangeiras e pela comunidade internacional de negócios como uma espécie de linha auxiliar do chavismo. Parafraseando o ditado, não basta que Lula seja a antítese de Chávez, pragmático e avesso a quimeras socialistas: é preciso que ele pareça isso. Imaginar que o mundo que interessa efetivamente ao Brasil se debruce com lupa sobre a América Latina para identificar as diferenças de caligrafia política entre os seus líderes é não entender como esse mundo funciona.

Doravante, não faltarão instâncias e oportunidades para Lula passar uma risca de giz separando o Brasil do século 21 e o “socialismo do século 21”, sinônimo de populismo autoritário, com que Chávez ameaça a Venezuela. Já na próxima semana ocorrerá no Rio de Janeiro a primeira reunião de cúpula do Mercosul desde que há um mês, em Brasília, Chávez disse nas bochechas de Lula que o bloco de que ele é fervoroso defensor, o Mercosul, e a Comunidade Andina de seus sonhos “não servem para nada”. O brasileiro não encontrou resposta melhor do que tartamudear, pouco depois, que rejeitava “a negação do que estamos fazendo” e apelar aos dirigentes regionais que apresentassem “uma cara política de integração”. O que fará agora se na próxima cúpula do Rio de Janeiro o líder bolivariano voltar a defender sua tese de que o Mercosul “não serve para nada” se não servir aos objetivos do socialismo bolivariano?

Outro momento decisivo se dará no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), com a qual o governo de Caracas tende a romper. Dias atrás, o desbocado Chávez usou uma expressão vulgar, equivalente a “idiota”, para desancar e pedir a saída do secretário-geral da entidade, o chileno José Miguel Insulza, que o criticara por não renovar a concessão de uma emissora de TV que lhe faz oposição. A reação inicial brasileira foi positiva. O representante de Brasília no órgão, embaixador Osmar Chohfi, solidarizou-se com Insulza e encaixou na sua fala uma referência à “liberdade de expressão”. Resta esperar que essa posição seja mantida.

Comentando a “chavinização” das empresas venezuelanas, o presidente da Petrobrás, José Sérgio Gabrielli, disse que o fato “não deveria surpreender ninguém” porque vinha sendo anunciado “há bom tempo”.

De fato, só o que surpreende é que, sendo o comportamento de Chávez perfeitamente previsível, a diplomacia brasileira ainda não tenha corrigido o erro gravíssimo que cometeu ao acreditar que, engolindo os sapos que ele o fez engolir, Lula satisfaria a sua ambição de liderança na América Latina.

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