Pesquisa inédita dá uma
visão inteiramente nova
da nossa vida musical
Rosana Zakabi
Meio milhão de pessoas foram ao delírio quando o grupo americano de rap Black Eyed Peas cantou My Humps na festa de réveillon na Praia de Ipanema, no Rio de Janeiro. A canção é sucesso entre os adolescentes e toca a toda hora nas rádios. Mesmo quem prefere outro tipo de música e detesta rap deixou-se envolver pelo ritmo. A questão aqui, na verdade, é mais abrangente: por que fazemos e gostamos de música? Esclarecedoras respostas a essa antiga questão podem ser encontradas no livro This Is Your Brain on Music (Esse É Seu Cérebro na Música), lançado no ano passado nos Estados Unidos. Seu autor, o neurocientista americano Daniel Levitin, da Universidade McGill, em Montreal, Canadá, comandou uma equipe que realizou exames de ressonância magnética no cérebro de treze pessoas enquanto elas ouviam música. O resultado do trabalho é a mais detalhada descrição já obtida pela ciência da – para usar as palavras de Levitin – "refinada orquestração entre várias regiões do cérebro" envolvidas na "coreografia musical".
Algumas descobertas feitas pelos pesquisadores estão dentro do esperado. Por exemplo, um bom jantar, a música e uma noite de sexo ativam as mesmas regiões do cérebro associadas ao prazer e ao bem-estar – o que ajuda a explicar, afinal, por que esse trio de atividades se harmoniza tão bem. Por outro lado, a equipe de Levitin desvendou processos neurológicos que até então tinham escapado aos pesquisadores. Um dos mais surpreendentes é que a percepção musical não é resultado do trabalho de uma área específica do cérebro, como ocorre com muitas atividades, mas da colaboração simultânea de uma grande quantidade de sistemas neurológicos.
Uma conclusão da pesquisa é que muito do que se imagina ser o som do mundo exterior ocorre na verdade dentro do cérebro. As moléculas de ar que fazem vibrar nossos tímpanos não têm em si as variações entre sons graves e agudos. Elas oscilam numa determinada freqüência que o cérebro mede; a partir disso, ele constrói uma representação interna com variações de tonalidade sonora. É similar ao que acontece com as ondas de luz, que são desprovidas de cor. É o cérebro e o olho que constroem as cores medindo a freqüência das ondas. Levitin nota que o cérebro não apenas produz uma representação interna do som, mas também lhe dá significado.
No laboratório, o cientista percebeu que, quando as pessoas ouvem uma música da qual gostam – e não uma melodia desagradável ou um ruído qualquer –, uma área ativada é o cerebelo. Trata-se de uma grande surpresa científica. Em termos de evolução, trata-se de uma das partes mais antigas do cérebro, responsável pela coordenação motora, não envolvida com as emoções. Por que então só é ativada quando o ouvinte gosta da música? A resposta encontrada pelos cientistas é a seguinte: quando se ouve uma música, o ouvido envia o som não apenas para regiões especializadas do cérebro, mas também para o cerebelo, que se "sincroniza" com o ritmo da música, tornando possível acompanhar a melodia. Levitin diz que parte do prazer da música é o resultado de uma espécie de jogo de adivinhações: o cerebelo tenta prever a próxima batida. Se acerta, ótimo. Melhor ainda se é surpreendido por uma mudança no ritmo, pois o cerebelo parece ter prazer no processo de sincronização.
Produtor musical de sucesso antes de se tornar cientista, Levitin está à vontade para lidar com as duas faces da questão – neurociência e teoria musical. Mas, para decepção dos artistas, não foi capaz de localizar fisicamente o talento no cérebro. "Não existe um gene musical ou uma área no cérebro que os torna especiais", disse Levitin numa entrevista à revista Wired. "O talento de um músico se deve a um conjunto de uma dúzia de habilidades, como coordenação motora, bom ouvido, boa voz e criatividade, e não a apenas um único dom." Isso é inesperado, pois os cientistas sabem que o processo de especialização numa atividade – no jogo de xadrez, por exemplo – provoca mudanças na estrutura cerebral e cria circuitos neurológicos especializados. A conclusão: é possível perder uma determinada habilidade e ainda assim manter a capacidade musical. Beethoven, por exemplo, que começou a ter problemas de audição aos 26 anos, continuou a compor mesmo depois de ficar inteiramente surdo, vinte anos depois.
O estudo, entretanto, não conseguiu colocar um ponto final numa questão que intriga os cientistas há séculos: por que o ser humano começou a fazer música? Em A Descendência do Homem, publicado em 1871, Charles Darwin, pai da teoria da evolução, sustenta que as notas musicais e os ritmos foram desenvolvidos pela espécie humana com o objetivo de atrair o sexo oposto, assim como fazem alguns pássaros. "Como ferramenta para ativar pensamentos específicos, a música não é tão boa quanto a linguagem", escreveu Levitin. "Mas, como ferramenta para suscitar sentimentos e emoções, a música é melhor que a linguagem." Não há cultura humana que não tenha produzido músicas. Estudos recentes mostram que os bebês começam a ouvir e a memorizar melodias ainda no útero da mãe. Pequenos, eles preferem músicas da própria cultura. Na adolescência, escolhem o tipo específico de música de que vão se lembrar e que apreciarão pelo resto da vida. "Nessa fase, a tendência é se lembrar de coisas com alto componente emocional porque os neurotransmissores e a amígdala cerebral estão trabalhando arduamente para ligar a memória a fatos importantes", diz Daniel Levitin. É uma explicação de por que as músicas que foram hit nos anos 80 continuam a fazer sucesso entre os trintões.
LUDWIG VAN BEETHOVEN (1770-1827)
Com problemas de audição desde jovem, compôs várias peças musicais depois de ficar totalmente surdo
HEITOR VILLA-LOBOS (1887-1959)
O maestro era dotado de invejável ouvido musical, o que lhe possibilitava compor ao mesmo tempo em que ouvia rádio e conversava com outras pessoas. Chamava a isso de "ouvido profundo"
STEVIE WONDER (1950-)
Cego de nascença, compõe inspirado naquilo que chama de "um conhecimento enciclopédico da música popular"