31 12 2006
Mais uma vez, o Congresso aprovou um orçamento faz-de-conta. Como tem ocorrido desde a Constituição de 1988, o relator do projeto, senador Valdir Raupp (PMDB-RO), reestimou a receita e "achou" R$ 10 bilhões para atender emendas parlamentares.
O truque burla as normas constitucionais (art. 166), segundo as quais a aprovação de uma emenda depende da anulação de despesa, proibido o cancelamento de dotações para pessoal, serviço da dívida e transferências constitucionais aos Estados e municípios.
Acontece que pode haver emendas para "a correção de erros e omissões". Foi por aí que os relatores encontraram a brecha. Passaram a interpretar que "erros e omissões" se referem à estimativa da receita. Ao contrário do que se pensava, o orçamento não se modernizou, nem institucional nem moralmente (como se viu no caso dos sanguessugas).
Os parlamentares aceitam que o Orçamento é autorizativo: o Executivo cumpre o que é obrigatório e não libera parte ou a totalidade das outras dotações, permitindo o cumprimento de metas fiscais. Não existe essa regra em canto nenhum.
O Orçamento é uma lei que deve ser cumprida. Não há razões históricas nem institucionais para tratá-lo como "autorizativo". É através dele que os parlamentares decidem sobre prioridades. Todas as políticas públicas de que dependem o desenvolvimento e o bem-estar passam de alguma forma pelo Orçamento.
O Orçamento é uma conquista da democracia e representa a mais importante decisão do parlamento. Por isso, costuma ser aprovado no início do verão. Os parlamentares só entram de férias quando o tiverem aprovado. Daí por que os períodos do exercício fiscal são diferentes nos Hemisférios Sul e Norte.
No Reino Unido, pátria do moderno processo orçamentário, o assunto é levado a sério até no cerimonial e nas prerrogativas do ministro da Fazenda (Chanceler of the Exchequer). Único membro do Gabinete, além do primeiro-ministro, a ter residência oficial em Downing Street, ele vai a pé de sua casa do Parlamento, onde entrega o documento sob as luzes das câmaras da mídia e o interesse de um batalhão de repórteres.
O orçamento obedece ao mesmo princípio de que não pode haver tributação sem legitimidade (no taxation without representation). Assim como é preciso autorização para criar tributos ou elevar suas alíquotas, não pode haver despesa sem a chancela legislativa.
Nos EUA, que adotaram muitas das instituições inglesas, inclusive as orçamentárias, os funcionários públicos devem ser mandados para casa, sem remuneração, se o Congresso não aprovar ou elevar as dotações dos seus respectivos órgãos. Calcula-se o exato momento em que a verba chegará ao fim. Sem isso, o Executivo estaria realizando uma despesa (o compromisso de pagar os salários no fim do mês) sem autorização legislativa.
O Brasil é herdeiro de outras tradições. Na época em que os ingleses forjavam suas instituições democráticas, os nossos antepassados ibéricos praticavam o patrimonialismo, no qual os interesses do rei se confundiam com o orçamento público. Talvez por isso, até hoje o Orçamento da União não é levado a sério.
Da maneira como é aprovado e executado no Brasil, o Orçamento adquire uma característica singular. É utilizado como instrumento de barganha para votações no Congresso. O governo pode "conquistar" votos para seus projetos liberando emendas de interesse de parlamentares.
Desse modo, uma das instituições basilares da democracia e do bom governo é tratada com um certo desprezo. Por incrível que pareça, o tratamento de peça "autorizativa" termina sendo a menos ruim das saídas. O contigenciamento desmoraliza a idéia de orçamento, mas dá ao Executivo um poder excessivo, com o qual evita que a situação, já ruim, venha a piorar.
A moralização institucional do Orçamento exige que se lhe dê o caráter mandatório, como prevê a Constituição e a História, ou seja, as dotações aprovadas devem ser totalmente liberadas.
Teme-se, com razão, que essa regra civilizada resulte em desastre, pois neste caso as emendas parlamentares se transformariam automaticamente em despesa. Por isso, seria preciso proibir a esperteza da "reestimativa" da receita. As projeções anuais da arrecadação passariam a ser feitas em conjunto pelos órgãos técnicos do Executivo e do Legislativo.