Reunião do Mercosul mostra que o Brasil
tem agenda mais moderna que os vizinhos
Diogo Schelp
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Tempos atrás, era comum ouvir que o Brasil vivia de costas para o restante da América do Sul. Metáfora mais adequada à realidade atual seria a de o Brasil como um forte assediado por caudilhos beligerantes. Isso porque o país é agora um bastião de estabilidade, responsabilidade política e econômica encravado num continente raivoso e cada vez mais irrelevante no cenário global. A reunião da cúpula do Mercosul, realizada no Rio de Janeiro, na semana passada, colocou em evidência a especificidade brasileira. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva viu-se na delicada situação de sustentar duas posições aparentemente antagônicas: primeiro, defender a integração regional e, segundo, reforçar aos olhos do mundo o fato de que o Brasil atingiu um estágio mais estável e moderno do que os vizinhos.
Ao lado de Lula sentava-se Hugo Chávez. Ao desembarcar no Rio para participar do encontro, o venezuelano deu uma boa medida da encrenca existente ao redor do Brasil. Chávez prometeu "descontaminar o Mercosul do neoliberalismo". A afirmação é coerente com quem promete "socialismo ou morte". Tanto uma como outra expressão não querem dizer rigorosamente nada. A intenção do venezuelano, porém, vai contra o bom senso nas relações regionais. Os projetos de integração econômica da América Latina foram concebidos como complementos naturais das reformas econômicas modernizantes e antiestatizantes dos anos 90. O Mercosul, reunindo originalmente Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, e o Nafta, entre Estados Unidos, Canadá e México, fincam alicerces nos princípios de livre circulação de bens e capitais, em baixas tarifas alfandegárias, na atração de investimentos externos e no incentivo à concorrência entre empresas privadas.
Fernando Llano/AP |
Pajelança e Carnaval: Correa toma posse em cerimônia indígena no Equador e, à abaixo, Chávez e Lula na reunião do Mercosul, no Rio |
André Penner/AP |
"O consenso sobre essas questões desapareceu, sobretudo em países como Venezuela, Bolívia, Equador e Argentina", disse a VEJA o uruguaio Francisco Panizza, da London School of Economics, na Inglaterra. A região dividiu-se em dois grupos: o de países modernizantes – Brasil, Chile, Colômbia e, em certa medida, Uruguai – e o grupo populista, que flerta com um tipo requentado de socialismo autoritário. "O trágico é que políticas populistas não são capazes de resolver os problemas sociais no longo prazo, e, no final, as condições da população tendem a ficar ainda piores", disse a VEJA o chileno Sebastian Edwards, ex-economista-chefe do Banco Mundial.
Reside aí o perigo que ronda o Brasil. Enquanto o país tenta avançar rumo à consolidação da estabilidade política e da abertura para o mundo, muitos vizinhos, sob o comando de caudilhos populistas, retrocedem ao nacionalismo econômico, ao isolamento cultural e tecnológico – a receita está na raiz do subdesenvolvimento latino-americano. A estabilidade e a integração da região são uma preocupação permanente da diplomacia brasileira há vários governos. O coronel venezuelano é, ao contrário, um fator de perturbação nas relações entre os países sul-americanos e um fantasma que afugenta da região os investidores estrangeiros. O contágio de sua guinada estatizante e autoritária está, por enquanto, limitado à Bolívia e ao Equador. Mas é grande o perigo de que as idéias chavistas estimulem movimentos radicais, como o MST brasileiro, a lutar pelo fim da democracia.
A Argentina do instável Néstor Kirchner aproximou-se de Chávez por interesses econômicos (o venezuelano comprou bônus da dívida argentina e fez alguns investimentos no país) e pratica uma política neopopulista, com surtos estatizantes e controle de preços. Mas é difícil imaginar que isso leve a uma virada na direção daquilo que Chávez chama de "socialista do século XXI". Até porque há na Argentina um Congresso e uma oposição atuantes, Judiciário independente e um setor privado bem organizado e influente. De modo imprudente e apressado, Chávez foi aceito como membro pleno do Mercosul, no ano passado. Evo Morales, seu clone e seguidor, apresentou a candidatura da Bolívia, que está sendo examinada. O problema para o Brasil é que a presença desses dois inimigos declarados da globalização e do livre-comércio pode inviabilizar as negociações comerciais envolvendo blocos importantes, como a União Européia.
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Baderna e fanatismo: partidários de Morales saem à rua para depor governador de oposição. Abaixo, o boliviano recebe Ahmadinejad, o presidente "atômico" do Irã |
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Nem Chávez nem Morales têm compromisso com a democracia, uma condição para ser membro do Mercosul. Chávez foi eleito num momento de crise na Venezuela. Habilidoso e carismático, ele usou os mecanismos da democracia para acabar com a democracia. À força de plebiscitos, conseguiu perpetuar seu mandato e controlar o Legislativo e o Judiciário. Sua reeleição em dezembro se explica pela facilidade com que distribui dinheiro aos eleitores e pela força da intimidação política. Na quinta-feira passada, com fidelidade de vacas de presépio, os deputados venezuelanos concederam ao coronel o direito de governar por decreto. Enfim, um ditador sem máscara. Por que, então, o governo brasileiro faz questão de incluir a Venezuela e a Bolívia no Mercosul e, para completar, ainda convidou o Equador, cujo novo presidente compartilha as mesmas idéias de Chávez e Morales?
A explicação está na crença do governo petista de que o Brasil está predestinado a liderar a região. O chanceler Celso Amorim disse, na semana passada, que o Mercosul não pode ser guiado apenas por interesses econômicos, mas principalmente por seu papel geopolítico, a exemplo da União Européia. Para Amorim, acolher Bolívia e Venezuela é uma forma de trazer estabilidade para a região. Há dois problemas nessa constatação. O primeiro está relacionado ao fato de que o contexto geopolítico que levou a Europa à integração não existe aqui. A América do Sul não foi o cenário de uma guerra mundial que levou os países envolvidos a buscar uma forma de evitar novas tragédias bélicas. O segundo engano está em acreditar que os países entram na União Européia por simples vontade política. "Toda entrada no bloco é precedida de complexas avaliações para eliminar obstáculos à integração. Espanha, Portugal e Grécia, por exemplo, tiveram de acelerar seu processo de democratização para entrar no bloco", observa o ex-ministro Maílson da Nóbrega.
Na prática, a presença da Venezuela e da Bolívia no Mercosul atrapalha os interesses do Brasil de duas maneiras. A primeira é que barra as tentativas brasileiras de negociar o fim dos subsídios agrícolas dos países ricos. Chávez, cujo país depende totalmente da exportação de petróleo, não tem o menor interesse em acabar com os subsídios. O segundo aspecto negativo da recente expansão do Mercosul é que dificulta o processo de integração do Brasil com a economia global. Os países do Mercosul são obrigados a tomar posições unificadas nas negociações com outros países. Isso torna mais lento o processo de assinatura de tratados comerciais. "Enquanto podem ser contadas nos dedos de uma mão as tentativas de acordo do Mercosul com outras regiões, o México já costurou tratados com 46 países e o Chile, com 52", diz o economista Carlos Langoni, diretor do Centro de Economia Mundial da Fundação Getulio Vargas (FGV), no Rio de Janeiro.
O contraponto à estratégia chavista são o sucesso do modelo liberal chileno e o conservadorismo responsável do governo Lula, que, mesmo sem retomar as privatizações, respeita as regras do mercado. Jorge Castañeda, ex-ministro do Exterior do México, escreveu que o que diferencia o trio Chávez, Morales e Correa da chilena Michelle Bachelet, do brasileiro Lula e do uruguaio Tabaré Vázquez é o fato de os primeiros serem esquerdistas de primeira viagem. Os outros três, velhos militantes, souberam se adaptar à nova realidade econômica e política do mundo globalizado. A Colômbia, o único desses países que tem um governo de centro-direita, também passa por um período de expansão econômica, apesar de perturbada pelo narcoterrorismo, que recebe apoio tático de Chávez. As bravatas venezuelanas e bolivianas não têm impacto maior na economia brasileira (apesar da expropriação de instalações da Petrobras na Bolívia) porque os investidores internacionais já aprenderam que os sul-americanos não são todos iguais. Na semana passada, ao tomar posse como presidente do Equador, Rafael Correa disse que iria ajustar a economia equatoriana ao "socialismo do século XXI" de seu amigo Chávez. Em seguida, deu o primeiro passo autoritário ao assinar, em praça pública, um decreto para a realização de um referendo pela reforma da Constituição, enquanto a multidão gritava palavras de ordem contra o Congresso Nacional. Como resultado dessa apoteose caudilhista, o risco-país do Equador disparou, enquanto o do Brasil teve um dos níveis mais baixos de sua história.
Trata-se de um reconhecimento do abismo econômico existente entre o Brasil e boa parte de seus vizinhos. O Brasil é um país complexo, com território continental, grande população, regime democrático e a economia mais diversificada do continente. Seu produto interno bruto é superior à soma de todos os demais PIBs nacionais da América do Sul. "Além do tamanho, a sociedade brasileira é mais complexa", diz George Avelino, da Fundação Getulio Vargas. "Tem atores organizados, o que torna difícil implementar por aqui modelos homogeneizantes como o socialismo." A Venezuela de Chávez vive de um só produto, o petróleo. Apesar de toda a empáfia chavista, toda a economia venezuelana tem o tamanho do PIB do estado do Rio: 130 bilhões de dólares. Chávez é um aventureiro que, pode-se dizer, ganhou na loteria. Quando assumiu, em 1999, o barril de petróleo valia 9 dólares. No ano passado chegou perto de 70. Seu socialismo bolivariano depende inteiramente das exportações de petróleo, a única riqueza da Venezuela. Se o petróleo – cuja produção é praticamente toda vendida aos Estados Unidos – dá certo peso internacional à Venezuela, Equador e Bolívia são irrelevantes no cenário mundial. O principal produto do Equador é o petróleo, mas sua produção total é menor que a brasileira.
A complexidade econômica do Brasil reflete-se em uma maior estabilidade política. É inimaginável, no Brasil, uma polarização política da sociedade como há na Venezuela, entre chavistas e não-chavistas. Sem esse antagonismo, fica difícil o surgimento de caudilhos que se valem do apoio de movimentos sociais para governar em contato direto com as massas, passando por cima das outras instâncias republicanas. Na semana passada, por exemplo, Morales mobilizou milhares de indígenas para forçar a renúncia de dois governadores de oposição.
A persistência de governos populistas e autoritários nos países vizinhos ao Brasil tem várias explicações – e nenhuma delas está nos compêndios de Karl Marx. "Um fator é a herança das guerras de independência da América espanhola", diz Roberto Romano, filósofo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "Foram chefiadas por caudilhos, inspirados no padrão napoleônico de centralização do poder no Executivo, sem a intermediação das instituições." Essas conquistas criaram o mito do libertador, o grande líder que surge para resgatar a pátria, tem grandes poderes e fala diretamente com o povo. No Brasil, foi totalmente diferente: a corte (primeiro a portuguesa, depois a brasileira) instalou-se sobre uma estrutura social que vinha das colônias, com os grandes fazendeiros fazendo a mediação com a população mais pobre. Com certas mudanças, o esquema repetiu-se na república, sem que se criassem caudilhos. O processo civilizatório brasileiro, bem diferente do dos vizinhos, está agora se provando mais adequado aos tempos de cultura global.
Dicionário da demagogia
As palavras, na boca de um demagogo, servem para qualquer coisa, exceto para expressar aquilo que realmente significam. Aqui, um pequeno guia para entender a verdade escondida no palavreado dos caudilhos sul-americanos e seus assemelhados
1 LÍDER POPULAR
Hugo Chávez e Evo Morales costumam se identificar dessa forma, como se fossem intérpretes da vontade do povo. Numa democracia representativa não há lugar para líder. O que existe é o presidente constitucional, que presta contas aos demais poderes. Na falta de democracia, o manda-chuva é chamado de ditador.
2 SABEDORIA INDÍGENA
É a utilização política do mito do bom selvagem. Os índios têm sabedoria, como toda cultura, mas em termos de violência e crueldade nada tinham a aprender com os colonizadores europeus. Os incas, cujo império Morales gostaria de recriar, sacrificavam crianças ao deus Sol.
3 DEMOCRACIA DIRETA
Ao apelar direto às massas, a pretexto de que as instituições estão desmoralizadas e dominadas pelas "elites", Chávez adota um recurso típico das ditaduras: a manipulação das multidões em detrimento das regras democráticas. Adolf
Hitler foi campeão da democracia direta.
4 ANTIIMPERIALISMO
Essa falcatrua tradicional consiste em responsabilizar forças externas pelas mazelas domésticas. Não importa que seja mentira. Ao inventar um inimigo externo (Chávez versus EUA, por exemplo), o caudilho procura forçar a população a ver as relações internacionais como uma espécie de copa do mundo e a torcer por seu governo.
5 RIQUEZAS DO SUBSOLO
Uma balela muito difundida é a de que alguns países, como a Bolívia, são ricos, mas a exploração estrangeira impede que o país usufrua as riquezas naturais. Há uma mentira óbvia aí: riquezas do subsolo não valem nada, exceto se forem extraídas por alguém com os recursos e a tecnologia necessários.
6 INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
Quando fala nisso, Chávez não pensa em abertura comercial, livre fluxo de conhecimentos e pessoas ou de cooperação econômica, ao estilo da União Européia. Seu plano é uma coligação política para importunar os Estados Unidos. Enquanto isso, ele tenta implodir iniciativas práticas de integração econômica, como o Mercosul e a Alca.
Carlos Casaes/AE |
7 MOVIMENTOS SOCIAIS
Expressão genérica para organizações que agem à margem da lei e são usadas como massa de manobra para intimidar a oposição e as instituições. Morales, por exemplo, está utilizando a baderna promovida por "movimentos sociais" para tentar depor governadores democraticamente eleitos.
Fontes: Denis Lerrer Rosenfield, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e Francisco Panizza, da London School of Economics, na Inglaterra
Com reportagem de Denise Dweck, Duda Teixeira e Thomaz Favaro