Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, janeiro 17, 2007

A mesma via para a ditadura


editorial
O Estado de S. Paulo
17/1/2007

O primeiro ato do novo presidente do Equador, Rafael Correa, foi a assinatura de um decreto para o cumprimento de uma de suas duas principais promessas de campanha: a realização de uma consulta popular sobre a eleição de uma Assembléia Constituinte de plenos poderes, à revelia do Congresso equatoriano, apenas notificado da decisão. (A outra promessa foi a da renegociação da dívida externa do país.) O decreto foi assinado em praça pública, com a multidão gritando “fora, deputados” - e, significativamente, na presença do venezuelano Hugo Chávez e do boliviano Evo Morales.

A companhia é significativa porque exprime em carne e osso a impressionante similaridade dos meios de que, um depois do outro, os três se valem para construir regimes autocráticos, ou ditaduras unipessoais, em seus desafortunados países. O roteiro, idêntico, parece ter saído diretamente das páginas de um manual do autoritarismo, versão século 21. O primeiro a percorrê-lo, com êxito estrepitoso, foi evidentemente o coronel venezuelano que despontou para a história não ao se eleger, em 1998, mas quando liderou, anos antes, uma quartelada para se instalar pela força no Palácio Miraflores, em Caracas.

A primeira operação destinada a desmontar o carcomido sistema político venezuelano foi a entronização de uma Constituinte que fez rigorosamente o que o seu mestre mandou, abrindo caminho para a crescente concentração de poderes nas mãos do promotor da “revolução bolivariana”, devidamente aprovada em referendo. Depois, ganhou de presente da oposição a sua insensata recusa a participar das últimas eleições legislativas. Mas não lhe basta contar com um Parlamento cujos membros pertencem, sem uma única exceção, aos partidos da coalizão chavista.

Para facilitar ao extremo o domínio sobre os políticos submetidos ao seu controle, o caudilho, além de expurgar potenciais dissidentes, ordenou a fusão das siglas submissas numa única legenda, dita socialista, e exigiu do Congresso o direito vitalício à reeleição e a prerrogativa de governar por decreto. Antes do meio do ano, sairá do ar a única emissora de TV acessível à oposição: sua concessão não será renovada. A mesma democracia bolivariana de partido único e jefe único está em obras na Bolívia, onde Evo Morales muda conforme as suas conveniências as regras para a aprovação da futura Carta do país.

Ele quer também que o Parlamento vote uma lei que permita cassar, por plebiscito, congressistas e governadores, enquanto ameaça destituir a Suprema Corte que considera corrupta. A diferença é que o boliviano foi eleito por uma poderosa estrutura política, o Movimento ao Socialismo (MAS), enraizada na população indígena, ao passo que a relação de Chávez com a massa sempre foi direta - populismo em estado puro. Agora, último da fila, o equatoriano Correa é quem começa a preparar o desmonte das instituições políticas capazes de se contrapor aos impulsos autocráticos dos autodenominados redentores de seus povos.

Não que essas instituições sejam robustas ou respeitadas. Os três antecessores eleitos do novo presidente renunciaram ou foram destituídos pelo Congresso na esteira de intensos protestos populares. Correa assinalou na posse que o Congresso equatoriano - onde ele não tem nenhum deputado porque o seu partido, à maneira da oposição venezuelana, boicotou as eleições legislativas - não é percebido pela população como seu representante nem tem credibilidade. Mas ele não pretende trabalhar pela reforma do que chama de “partidocracia tradicional”. Quer, isso sim, usar a impopularidade do sistema como material de construção para erguer outro, centrado na sua pessoa.

Na tragédia desses três países, as posições ideológicas dos seus atuais líderes fazem par com a autoritária política de massa que lhes serve de instrumento, tolhendo, por definição, qualquer esboço de mudança para melhor das suas arcaicas instituições. Ninguém minimamente familiarizado com a história venezuelana negará que o chavismo conseguiu a proeza de ser um retrocesso mesmo diante da velha ordem carcomida que desfigurava a democracia no país. Os conflitos que ameaçam fragmentar a Bolívia poderão ter conseqüências ainda mais ominosas. E sobram razões para temer que, no Equador, a “democracia de massinha moldável” de que fala Correa será doravante amoldada para servir à autocracia em gestação.

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