O poeta português Fernando Pessoa tem uma faceta pouco conhecida pelos brasileiros, o de analista econômico, que agora está sendo revelada pelo livro “A economia em Pessoa: verbetes contemporâneos”, com escritos raros sobre economia e administração. A maior parte dos textos foi publicada na “Revista de Comércio e Contabilidade”, de Lisboa, em 1926, mas são praticamente desconhecidos, embora já tenham tido uma primeira divulgação no Brasil organizada pelo jornalista João Alves das Neves. A atual edição, segundo o ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco, responsável pela organização do livro, toma certas “liberdades editoriais” com o objetivo de exaltar sua contemporaneidade.
Segundo Franco, “será com ele que a estultice nacional terá que brigar agora, quando for tratar dos temas do livro”. O livro revela “um ângulo interessante, quase que totalmente novo, de Fernando Pessoa, e bem antenado com diversas polêmicas econômicas de nossos dias”. Os “verbetes contemporâneos” tratam de temas como privatização, globalização, marketing, desregulamentação, que no livro antecedem os títulos dos artigos de Pessoa, e abrangem 12 textos reunidos, sendo 11 artigos e uma “entrevista” realizada a partir de uma colagem de passagens desses mesmos artigos.
Segundo Gustavo Franco, as convicções liberais do poeta estão “defendidas com o ardor e o sarcasmo próprios” nos artigos, nos quais abordou esses temas “muito antes de esses fenômenos ganharem essas designações”.
Na introdução, o ex-presidente do Banco Central destaca que, “por ter obtido o seu sustento, em grande medida, dos 15 escritórios comerciais onde trabalhou como empregado e de sua intensa e pouco conhecida atividade como empreendedor”, Pessoa se dedicava “com entusiasmo e com gosto aos negócios, daí a extraordinária sabedoria prática que revela nos artigos que escreveu para a ‘Revista de Comércio e Contabilidade’, da qual foi um dos criadores e editores”.
Ao escrever sobre o monopólio estatal dos tabacos, que estava em discussão naquela ocasião depois de a exploração do tabaco ter sido privatizada para uma empresa francesa, e estar novamente para ser estatizada, Pessoa aborda temas que fazem parte da discussão atual sobre privatizações.
Gustavo Franco chama a atenção para o fato de que Fernando Pessoa, ao discutir o caso, aborda temas atualíssimos, como os “direitos difusos” dos consumidores e contribuintes.
O artigo intitulado “Estatização, monopólio e liberdade”, a partir do episódio dos tabacos, trata da questão de maneira genérica.
Para Pessoa, “a administração do Estado é o pior de todos os sistemas imagináveis (...), de todas as coisas organizadas, é o Estado, em qualquer parte ou época, a mais mal organizada de todas”.
No mesmo artigo, Pessoa trata de uma questão muito atual para nós, brasileiros: a atuação dos sindicatos e dos sindicalistas.
Segundo a análise de Fernando Pessoa, “uma vez constituído o sindicato, passam a dominar nele não os profissionais mais hábeis e representativos, mas os indivíduos simplesmente mais aptos e competentes para a vida sindical, isto é, para a política eleitoral dessas agremiações”.
Segundo Gustavo Franco, minorias organizadas explorando maiorias dispersas é possivelmente “a luta de classes que realmente importa no Brasil e quem sabe também alhures”.
Escrevendo sobre a ampliação das fronteiras do mundo através do comércio, Fernando Pessoa trata das conseqüências do que hoje chamamos de “globalização”, com suas repercussões no país de maneira geral e na cultura em particular. Sem usar o termo multiculturalismo muito em voga hoje, Pessoa já previa o intercâmbio de influências culturais.
Num outro artigo, em que trata de temas tão diversos quanto atuais, o poeta português aborda questões como legislação trabalhista “excessivamente paternalista”, protecionismo de maneira geral e, ao abordar a Lei Seca nos Estados Unidos, poderia estar debatendo a descriminalização da maconha nos dias atuais.
Pessoa defende a tese de que o exagero na “rede de proteção social” e a “proteção à indústria local” pode prejudicar exatamente aqueles que pretende proteger.
Num texto sobre a “essência do comércio”, Gustavo Franco vê proximidades com o que, em nossos dias, chamamos de marketing. O artigo assinala que a empresa moderna deve ter como missão ou filosofia, o “foco no cliente”. No texto sobre “concentração industrial”, Pessoa propõe o que anos depois seria chamado de cluster por Michael Porter.
O poeta adverte também sobre a inutilidade de conselhos formados por insiders ou por funcionários públicos na administração de empresas, e defende a auditoria independente em termos que parecem os dos folhetos do nosso “Novo Mercado” na Bovespa. Gustavo Franco enxerga na coletânea de pequenos textos de temas variados escritos por Pessoa, começando pelas “palavras iniciais”, que inaugura o primeiro número da “Revista Comércio e Contabilidade”, afinidade com um gênero literário contemporâneo: os blogs.
O acadêmico Alberto da Costa e Silva define assim o livro: “Nada poderia ser mais atual. Neste livro, um poeta escreve sobre economia, e um economista, sobre o poeta. A menor das surpresas é que o primeiro se revela um arguto analista econômico, e o segundo, um fino comentador literário”.
Entrevista:O Estado inteligente
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