Entrevista:O Estado inteligente

domingo, janeiro 14, 2007

MERVAL PEREIRA Democracia prejudicada

Se temas realmente relevantes para o fortalecimento do Poder Legislativo estivessem em discussão, e os principais partidos políticos — PMDB, PT e PSDB — não estivessem trabalhando apenas na lógica de ocupar espaços políticos, a disputa pela presidência da Câmara ganharia uma relevância política que por si só elevaria o prestígio da instituição e de seus membros.

As rebeliões que estão acontecendo dentro do PMDB e do PSDB, e o tom insurgente do atual presidente Aldo Rebelo, podem servir para reverter a situação de submissão em que se encontra o Legislativo.

O cientista político Sérgio Abranches, criador do termo “presidencialismo de coalizão”, e um dos principais analistas desta nossa forma de governo, fez um estudo do que chama de “inércia legislativa”, chegando à conclusão de que o fenômeno tem a ver com a conjuntura política da coalizão presidencial. Ele identifica especialmente dois momentos em que essa inércia prevalece sobre a capacidade de conversão do Executivo: em 2001 e 2002, e em 2005 e 2006, isto é, os dois últimos anos dos períodos presidenciais, que marcam crises nas coalizões presidenciais.

No segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, o desentendimento entre PSDB e PFL, que desaguou na candidatura de José Serra apoiada numa coalizão PSDB-PMDB. No caso do governo Lula, o período de crises políticas.

Segundo Sérgio Abranches, a consistência políticopartidária da coalizão presidencial e a força da liderança do presidente são fatores decisivos na estabilidade política e na formulação das políticas públicas.

No caso brasileiro, onde está caracterizado um marco institucional frágil, em troca de benefícios de natureza clientelista, “a maioria parlamentar cede o poder de agência ao presidente”, diz Abranches. Além dos critérios de urgência e relevância, que não são obedecidos na edição das medidas provisórias, há uma outra questão que não é tratada no estudo de Sérgio Abranches, mas que chegou a mobilizar a oposição logo no início do primeiro governo Lula.

A aprovação era tão automática que o governo cansou de enviar ao Congresso medidas provisórias que traziam embutidos assuntos diferentes, sem que fosse respeitado o inciso II do art. 7 da Lei Complementar no95 de 1998, que proíbe que uma lei contenha matéria estranha a seu objeto.

O governo fez isso durante muito tempo, até que as “pegadinhas”, como ficaram conhecidas, foram descobertas pela oposição. Uma medida provisória tratando de um tema irrelevante — e que portanto não poderia ser objeto de uma MP — embutia decisão importante, como por exemplo a prorrogação do prazo para as empresas que aderiram ao Refis.

A edição de MPs passou a ser uma forma de impor fatos consumados ao Congresso, pois elas geram efeitos imediatos e irreversíveis.

Com um levantamento das sessões trancadas por medidas provisórias, Sérgio Abranches prova que esse passou a ser um instrumento de atuação política do Executivo para paralisar o Legislativo nos momentos de maior crise política. A média de sessões trancadas de 2002 a 2006 foi de 64%, mas atingiu seu auge (71%) entre 2004 e 2006, entre o surgimento do caso Waldomiro Diniz e o mensalão.

O menor índice foi em 2003, período de lua-de-mel de Lula com os eleitores, quando apenas 33% das sessões foram trancadas.

Segundo o estudo de Sérgio Abranches, também é motivo para essa submissão do Legislativo ao Executivo uma característica do parlamentar brasileiro: ele raramente se comporta como o protagonista no processo legislativo. “Ele admite ser coadjuvante em termos reais, desde que possa parecer ao eleitorado como agente dinâmico”, analisa Abranches. Ele cita a “cortesia corporativa” que instituiu a praxe de assinar qualquer proposta de legislação apresentada por um parlamentar, mesmo que o colega não esteja de acordo com a proposição.

A praxe serve para que o deputado ou senador possa apresentar aos eleitores um rol de propostas de sua autoria, mesmo que essas propostas não tenham se tornado realidade. Outra característica identificada por Sérgio Abranches é a “irresponsabilidade parlamentar”. “O congressista não responde sequer pelas políticas que propõe. Não só abdica de proposições políticas como transfere toda a responsabilidade ao presidente da República.

E abdica de todas as formas, inclusive nos trabalhos de comissões”, critica.

Pela pesquisa de Sérgio Abranches, “o índice de desempenho das matérias de origem do Legislativo é sempre muito mais baixo. No período Lula, atingiu pisos próximos de zero”. A taxa de aprovação de medidas do Legislativo em período recente é, segundo Abranches, “inferior àquelas do regime militar posterior ao AI-5”.

O estudo de Sérgio Abranches chama a atenção para o fato de que essa hegemonia do Executivo sobre o Legislativo, se circunstancialmente pode ser útil para contornar crises políticas, termina por enfraquecer também o presidente da República.

Esse círculo vicioso, que leva o Executivo de hegemônico a refém, desenhando um impasse político, começa com a edição de medidas provisórias, avançando no processo de consolidação da hegemonia sobre a pauta legislativa, destituindo o Congresso de todo poder de agência.

Com o presidente com o papel principal no processo legislativo, o Congresso sente-se cada vez menos responsável pelas políticas públicas. Esse alheamento parlamentar incentiva a troca clientelista, com duas consequências: aumenta a fragmentação da coalizão, e torna o presidente refém de demandas por verbas e cargos.

Essa hegemonia no processo legislativo termina assim, conclui Abranches, “enfraquecendo politicamente o presidente e comprometendo a racionalidade das políticas públicas, levando a perdas sucessivas adicionais de qualidade da democracia”.

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