Passe numa boa locadora — tem de ser boa — e retire A Montanha dos Sete Abutres (Ace in the Role), filme do genial Billy Wilder, de 1951, com atuação estupenda de Kirk Douglas no papel do jornalista picareta Charles Chuck Tatum. O filme, um desastre de bilheteria, foi relançado depois com outro nome: The Big Carnival. Ganhou o Oscar de melhor roteiro, mas não rendeu grana. Pena. É a crítica mais devastadora que o cinema já fez ao jornalismo — ou a certo tipo de jornalismo ao menos. Que, não obstante e sempre, deve continuar livre das garras dos fenajentos. Fenajentos, para quem não sabe, são os defensores da proposta da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas) de se criar um Conselho Federal de Jornalismo.
Ao ficar sabendo que a Red Bull mandou distribuir bebida energética às pessoas que trabalhavam nos escombros da estação do Metrô em São Paulo (ler abaixo) e aos familiares das vítimas, lembrei justamente do “grande carnaval” que se vê no filme, de que falo a seguir. Era a estupidez que faltava nas toneladas de má-fé e de mau-caratismo político que soterram o bom senso. A propósito, diz a propaganda da bebida: “Red Bull te dá asas”. Isso num canteiro de obras em que se procuram corpos. Quem é o gênio que responde pelo marketing da empresa?
O filme
Charles Tatum foi demitido de mais de uma dezena de redações porque lhe faltava caráter. Vai parar num pequeno jornal de Albuquerque, uma cidadezinha do Novo México, onde nada acontece. Ao ser contratado, ele se diz pau para toda obra. Pode cuidar, assegura, tanto das notícias grandiosas como das irrelevantes. E, se faltarem eventos, ele diz que sai à rua e morde o cachorro. E cumpre a sua promessa. Uma das máximas de Tatum é que a morte de centenas de pessoas não tem importância; já a de um único indivíduo poder ser uma grande história. O filme é inspirado num fato real: o soterramento de um homem chamado Floyd Collins, em 1925. A cobertura do caso é apontada como um marco da narrativa jornalística que opta pela espetacularização de dramas humanos. O jornalismo nunca mais se recuperou.
Um Tatum esmagado pelo cinismo, pelo tédio e pelo desejo de voltar a um grande jornal é destacado para cobrir uma espécie de festival de caça às cascavéis numa cidade vizinha. Lá chegando, fica sabendo que Leo Minosa está preso numa espécie de gruta, justamente a Montanha dos Sete Abutres — aliás, é um dos raros filmes cujo título em português é infinitamente melhor do que o original (ou originais). Tatum sente o cheiro da notícia, do espetáculo e da tragédia. Tenta, a todo custo, retardar o resgate — no que é bem sucedido — e passa a manipular a mulher de Minosa, o fotógrafo e o xerife da cidade, com quem negocia o acesso exclusivo às ruínas.
Quanto mais tempo durar o espetáculo, melhor para ele, que consegue transformar o episódio num caso nacional. É o seu bilhete de volta para a grande imprensa. Um verdadeiro circo (the big carnival...) se forma no local. Não vou contar o fim do filme. Mas é importante saber que seus planos dão com os burros n'água. No pequeno jornal de Albuquerque, um lema colado à parede é alvo de sua chacota: “Diga a verdade”.
De volta à cratera
Voltemos ao acidente da estação do Metrô em São Paulo. Reparem. Na Folha de ontem, terça, podia-se ler: “Um professor de engenharia civil da Politécnica da USP, que também não quer ver seu nome publicado, disse que em certas obras essa prática pode ser absurda. Empresas de projetos, segundo ele, têm de ser contratadas como se fossem um cardiologista -o preço não é o fator mais importante, mas sim o nível de especialização. Num paralelo irônico, ele comenta que o prêmio para a economia de concreto seria como pedir ao cardiologista para colocar não três pontes de safena num paciente que sofreu infarto, mas duas.”
No Estadão desta quarta, lemos: “Qualidade tem preço e sua falta também. É assim que o vice-presidente da Sociedade Internacional de Mecânica de Solos e Engenharia Geotécnica (ISSMGE) e professor da Universidade de São Paulo, Waldemar Hachich, comenta o acidente na Estação Pinheiros. 'Será que os indivíduos que contratam obras por mínimo custo global usam o mesmo critério para escolher os cirurgiões que tratarão suas mazelas cardíacas?', pergunta, num fórum de discussão sobre o acidente no site da Associação Brasileira de Mecânica de Solos (ABMS).”
Ou os professores de engenharia civil da Politécnica da USP são todos grandes aficionados em cardiologia, ou há uma boa chance de que o anônimo da terça da Folha seja o sr. Waldemar Hachich, que aparece no Estadão desta quarta. Neste segundo jornal, justiça seja feita, praticamente não há especialistas que “pediram para que seus nomes não sejam revelados”. Mas eles pululam nas reportagens da Folha, fazendo acusações sempre as mais graves: às empreiteiras, ao Metrô, ao governo do Estado, à terceirização, à suposta economia de material.
O que mais me fascina é a facilidade com que opinam sem nem mesmo botarem o pé nas obras, terem acesso ao projeto, saberem detalhes da construção. “Faltava fiscalização”, acusa o sindicalista. “A parede de concreto era muito fina”, diz um anônimo. “O buraco deveria ter sido feito 15 metros mais para baixo”, sustenta outra fonte secreta. “Havia prêmio por economia de material”, assegura outro que prefere não ser identificado. “Tinha de usar o ‘tatuzação’, e não os explosivos”, opina mais um que pede sigilo. “Precisa fazer uma CPI”. Bem, essa voz é conhecida, claro: trata-se do PT...
Impressionante
O que impressiona é o jornalismo não ter aprendido com a experiência. Durante uns bons dias, estivemos todos convictos de que pilotos americanos gostam de ficar fazendo piruetas nos céus do Terceiro Mundo, não dão pelota para planos de vôo e acabam provocando a morte de 154 brasileiros. Até que se ficasse sabendo do erro da torre de controle e do caos que toma os céus do Brasil. À diferença do filme, o jornalismo não está alterando a cena da tragédia. Mas está, sim, caindo vítima da novidade a qualquer custo. Basta que um imbecil loquaz ostente um título de engenheiro e julgue ter algo a dizer, e lá está ele dando pitaco sobre o ocorrido. Em off, sempre em off.
É a lógica, não a suspeita de dolo, que indica que algum erro aconteceu na área de engenharia. Uma falha como essa é sempre humana. Mesmo que se seja colhido por algum evento da natureza, continua a ser um erro de previsão. É, sim, papel de jornalismo tentar buscar as causas, ouvir especialistas, cruzar opiniões. Mas assistimos é a uma verdadeira criminalização das empresas e de autoridades, sempre vinda da boca de pessoas que preferem não ser identificadas. Aí, não dá.
Ao ficar sabendo que a Red Bull mandou distribuir bebida energética às pessoas que trabalhavam nos escombros da estação do Metrô em São Paulo (ler abaixo) e aos familiares das vítimas, lembrei justamente do “grande carnaval” que se vê no filme, de que falo a seguir. Era a estupidez que faltava nas toneladas de má-fé e de mau-caratismo político que soterram o bom senso. A propósito, diz a propaganda da bebida: “Red Bull te dá asas”. Isso num canteiro de obras em que se procuram corpos. Quem é o gênio que responde pelo marketing da empresa?
O filme
Charles Tatum foi demitido de mais de uma dezena de redações porque lhe faltava caráter. Vai parar num pequeno jornal de Albuquerque, uma cidadezinha do Novo México, onde nada acontece. Ao ser contratado, ele se diz pau para toda obra. Pode cuidar, assegura, tanto das notícias grandiosas como das irrelevantes. E, se faltarem eventos, ele diz que sai à rua e morde o cachorro. E cumpre a sua promessa. Uma das máximas de Tatum é que a morte de centenas de pessoas não tem importância; já a de um único indivíduo poder ser uma grande história. O filme é inspirado num fato real: o soterramento de um homem chamado Floyd Collins, em 1925. A cobertura do caso é apontada como um marco da narrativa jornalística que opta pela espetacularização de dramas humanos. O jornalismo nunca mais se recuperou.
Um Tatum esmagado pelo cinismo, pelo tédio e pelo desejo de voltar a um grande jornal é destacado para cobrir uma espécie de festival de caça às cascavéis numa cidade vizinha. Lá chegando, fica sabendo que Leo Minosa está preso numa espécie de gruta, justamente a Montanha dos Sete Abutres — aliás, é um dos raros filmes cujo título em português é infinitamente melhor do que o original (ou originais). Tatum sente o cheiro da notícia, do espetáculo e da tragédia. Tenta, a todo custo, retardar o resgate — no que é bem sucedido — e passa a manipular a mulher de Minosa, o fotógrafo e o xerife da cidade, com quem negocia o acesso exclusivo às ruínas.
Quanto mais tempo durar o espetáculo, melhor para ele, que consegue transformar o episódio num caso nacional. É o seu bilhete de volta para a grande imprensa. Um verdadeiro circo (the big carnival...) se forma no local. Não vou contar o fim do filme. Mas é importante saber que seus planos dão com os burros n'água. No pequeno jornal de Albuquerque, um lema colado à parede é alvo de sua chacota: “Diga a verdade”.
De volta à cratera
Voltemos ao acidente da estação do Metrô em São Paulo. Reparem. Na Folha de ontem, terça, podia-se ler: “Um professor de engenharia civil da Politécnica da USP, que também não quer ver seu nome publicado, disse que em certas obras essa prática pode ser absurda. Empresas de projetos, segundo ele, têm de ser contratadas como se fossem um cardiologista -o preço não é o fator mais importante, mas sim o nível de especialização. Num paralelo irônico, ele comenta que o prêmio para a economia de concreto seria como pedir ao cardiologista para colocar não três pontes de safena num paciente que sofreu infarto, mas duas.”
No Estadão desta quarta, lemos: “Qualidade tem preço e sua falta também. É assim que o vice-presidente da Sociedade Internacional de Mecânica de Solos e Engenharia Geotécnica (ISSMGE) e professor da Universidade de São Paulo, Waldemar Hachich, comenta o acidente na Estação Pinheiros. 'Será que os indivíduos que contratam obras por mínimo custo global usam o mesmo critério para escolher os cirurgiões que tratarão suas mazelas cardíacas?', pergunta, num fórum de discussão sobre o acidente no site da Associação Brasileira de Mecânica de Solos (ABMS).”
Ou os professores de engenharia civil da Politécnica da USP são todos grandes aficionados em cardiologia, ou há uma boa chance de que o anônimo da terça da Folha seja o sr. Waldemar Hachich, que aparece no Estadão desta quarta. Neste segundo jornal, justiça seja feita, praticamente não há especialistas que “pediram para que seus nomes não sejam revelados”. Mas eles pululam nas reportagens da Folha, fazendo acusações sempre as mais graves: às empreiteiras, ao Metrô, ao governo do Estado, à terceirização, à suposta economia de material.
O que mais me fascina é a facilidade com que opinam sem nem mesmo botarem o pé nas obras, terem acesso ao projeto, saberem detalhes da construção. “Faltava fiscalização”, acusa o sindicalista. “A parede de concreto era muito fina”, diz um anônimo. “O buraco deveria ter sido feito 15 metros mais para baixo”, sustenta outra fonte secreta. “Havia prêmio por economia de material”, assegura outro que prefere não ser identificado. “Tinha de usar o ‘tatuzação’, e não os explosivos”, opina mais um que pede sigilo. “Precisa fazer uma CPI”. Bem, essa voz é conhecida, claro: trata-se do PT...
Impressionante
O que impressiona é o jornalismo não ter aprendido com a experiência. Durante uns bons dias, estivemos todos convictos de que pilotos americanos gostam de ficar fazendo piruetas nos céus do Terceiro Mundo, não dão pelota para planos de vôo e acabam provocando a morte de 154 brasileiros. Até que se ficasse sabendo do erro da torre de controle e do caos que toma os céus do Brasil. À diferença do filme, o jornalismo não está alterando a cena da tragédia. Mas está, sim, caindo vítima da novidade a qualquer custo. Basta que um imbecil loquaz ostente um título de engenheiro e julgue ter algo a dizer, e lá está ele dando pitaco sobre o ocorrido. Em off, sempre em off.
É a lógica, não a suspeita de dolo, que indica que algum erro aconteceu na área de engenharia. Uma falha como essa é sempre humana. Mesmo que se seja colhido por algum evento da natureza, continua a ser um erro de previsão. É, sim, papel de jornalismo tentar buscar as causas, ouvir especialistas, cruzar opiniões. Mas assistimos é a uma verdadeira criminalização das empresas e de autoridades, sempre vinda da boca de pessoas que preferem não ser identificadas. Aí, não dá.
Vários atrasos se conjugam para exorcizar o verdeiro "demônio" responsável pelo acidente: o capitalismo, a economia de mercado, o lucro, a ambição. Tudo aquilo que faz a fortuna dos países que deram certo. O Estado mata, por dia, nos hospitais públicos, muito mais de sete pessoas. Mas continuamos a achar que só ele pode nos oferecer a verdadeira proteção.