Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, janeiro 15, 2007

Clóvis Rossi - E havia uma bala na agulha



Folha de S. Paulo
15/1/2007

Em 2004 , acabara de voltar de uma viagem de trem Madri/Paris/Madri, com a mulher e os netos, quando terroristas explodiram trens em diferentes estações de Madri e adjacências. Agora, no fim do ano passado, estivemos por três vezes no estacionamento do Terminal 4 do aeroporto de Barajas, para retirar e devolver carro alugado, dias antes de terroristas bascos demolirem praticamente todo o estacionamento, matando dois equatorianos.
Não obstante o perigo claro e iminente, nunca, antes ou depois desses episódios, senti medo em Madri. Ao contrário. Cada vez que chego, sinto-me "arropado" pela cidade, essa expressão espanhola que traduz melhor o se sentir acolhido e abrigado do que qualquer palavra em português.
Já São Paulo, a cidade em que nasci e vivi a vida toda, exceto quatro anos como correspondente desta Folha no exterior, percebo-a inóspita. Aqui, ao contrário do que aconteceu com os episódios de Madri, senti-me tragado pela cratera aberta na obra do metrô -até por ser a marginal Pinheiros caminho relativamente habitual.
A tragédia só reforça a já antiga sensação de que sair de casa em São Paulo é uma roleta-russa: você, cidadão (e contribuinte), nunca sabe se será naquele dia e naquela hora que haverá uma bala na agulha e ela estourará no teu colo/cabeça/ peito, seja lá onde for.
Sei que há um forte componente paranóico nessa percepção. A esmagadora maioria dos que vivem na cidade sai e volta para casa inteirinho. Mas é a tal história: no tambor do revólver da roleta-russa, só há uma bala em seis buracos (pelo menos nos revólveres do tempo em que se inventou a roleta-russa). Não depende de você, mas da sorte ou do azar, a bala estar ou não no buraco na hora em que você acionar o gatilho.
É essa impossibilidade de controlar minimamente os riscos para a sua vida (ou, como no caso do buraco do metrô, também a sua casa) que torna angustiante a vida na cidade.
Há algo mais trivial, inocente e aparentemente seguro do que dar uma volta de carro pelo bairro (no caso, Pinheiros), ainda mais durante o dia? De repente, está lá a bala na agulha, abre-se um buraco e te engole.
Os "buracos" são de vários tipos e tamanhos, todos arquiconhecidos: assalto, roubo, seqüestro, enchente, congestionamentos infernais (que podem não matar no ato, mas de tanto se repetirem matam um pouco por dia). Tão arquiconhecidos que foram incorporados à rotina. A gente já nem reclama deles, e até estranha quando nenhum desses "buracos" se abre no seu dia.
A rotina inóspita tem tal dimensão que parece não haver culpados. O governo do Estado estava informado de que a obra que desabou tinha problemas? Sabia, confessa o secretário José Luiz Portella. Fez o que tinha que fazer? Diz que fez. Mas como a obra é complexa, na avaliação dos especialistas, a causa do acidente será necessariamente complexa e, por extensão, ninguém será responsabilizado.
Por isso, poucos paulistanos sentem-se "arropados" pelo poder público (estadual e municipal). Tanto que o proprietário de um apartamento em prédio próximo ao buraco do momento torce para que o guindaste caia sobre o prédio, para poder receber o seguro devido.
É para ele a única solução, porque tem compreensível medo de voltar a viver no apartamento e sabe que ninguém o comprará a não ser a preço de banana, porque fica em uma área em que havia, sim, uma bala na agulha na roleta-russa diária do paulistano.
Para ser franco, sentia menos medo na cobertura da guerra civil em El Salvador, nos anos 80. Ali, o risco era evidentemente maior, mas até certo ponto havia como calculá-lo. Sabia que, em certas áreas e certas horas, havia não uma mas incontáveis balas na agulha. Aqui, você pode sumir de repente numa rua aprazível de um bairro aprazível, o último lugar do mundo em que deveria haver bala na agulha.

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