Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, janeiro 18, 2007

Celso Ming - Mais do que espuma?



O Estado de S. Paulo
18/1/2007

Na falta de vontade política empenhada em superar assimetrias, uma após outra, as reuniões de cúpula do Mercosul têm-se limitado a duas coisas: a promover intensa competição de egos e a produzir espuma. Será uma surpresa se a cúpula que começa hoje e termina amanhã, no Rio, desembocar num resultado de melhor qualidade.

O presidente do mais novo sócio, a Venezuela, acaba de comunicar que seu país está construindo o 'socialismo do século 21'. Por falta de explicações, ninguém ainda foi capaz de entender as macroconseqüências disso. Mas é o tipo de projeto que, em vez de integrar, tem tudo para desintegrar um bloco.

Mais aberrante ainda, Hugo Chávez anuncia que está preparando um arcabouço jurídico que o legitimará como presidente vitalício da Venezuela. Como em suas cláusulas pétreas o Mercosul está comprometido com a democracia, fica difícil entender como a pretensão de Chávez possa ser agasalhada.

Paraguai e Uruguai acabam de comunicar que não aceitam a proposta brasileira de contratar e liquidar operações de comércio exterior entre os países membros em moedas nacionais dos países do bloco.

A Argentina não concorda com a proposta brasileira de conceder um regime especial de Tarifa Externa Comum (TEC) para Paraguai e Uruguai. Argentina e Uruguai se engalfinham no Tribunal de Haia a propósito da instalação de uma grande central produtora de celulose à margem esquerda do Rio Uruguai.

O Mercosul pretende ser uma união aduaneira, o segundo estágio de integração comercial. Além de pressupor a condição de zona de livre-comércio, uma união aduaneira exige uma política comum de comércio exterior. Entre os capítulos em que se subdivide uma política de comércio exterior estão as regras de investimento. Ora, o Uruguai está na iminência de assinar acordo com os Estados Unidos sobre regras de investimento. E há razões para acreditar em que este seja o primeiro passo para a assinatura de um tratado de livre-comércio em separado com os Estados Unidos. Em princípio, isso implica saída do Uruguai ou desmoralização do Mercosul.

Com o apoio do Itamaraty, a Bolívia quer porque quer ser aceita como membro pleno do Mercosul sem ter de aderir à TEC, o coração da união aduaneira, o que a obrigaria a aumentar a proteção comercial e a enfrentar mais inflação.

Integração econômica não existe porque cada país vai para um lado. A Argentina, por exemplo, tem um câmbio artificialmente desvalorizado, suas exportações levam um confisco de 5% a 40% sobre o valor de venda. Os preços internos estão submetidos a controles do governo central. A Venezuela está anunciando a estatização do setor de energia e de comunicações. O Brasil até agora seguiu as regras da ortodoxia econômica, baseadas no tripé responsabilidade fiscal, câmbio flutuante e sistema de metas de inflação. Mas sabe-se lá até quando fará esse jogo.

Os tratados do Mercosul só têm sido observados quando as cláusulas convêm ao país membro. Quando deixam de convir, atropela-se o que foi assinado, sem que essa decisão produza conseqüências. Os diplomatas da Argentina e do Brasil repetem diariamente que o Mercosul tem tantas perfurações quanto uma tábua de tiro ao alvo. Mas não conseguem mudar o que vêem.

Os governos de Brasil, Argentina, Venezuela e Bolívia não escondem sua antipatia, ou mesmo repulsa, a acordos de livre-comércio. O presidente Lula já se gabou de ter contribuído decisivamente por afundar o projeto da Alca. Kirchner tem medo de que a indústria argentina seja arrasada pelo aumento da competição num ambiente de comércio mais livre. Para Chávez, a Alca é o diabo. Nesse quadro, fica muito difícil antever algum sucesso numa negociação comercial.

Como das outras vezes, o presidente Chávez deverá fazer dessa cúpula mais uma propaganda de si próprio. Mas, como já foi longe demais, sua atuação está exigindo contraponto.

Não parece tão maluco pensar que tanto Lula como Kirchner se vejam na obrigação de compensar os exageros de Chávez com atitudes mais à direita, tanto dentro do Mercosul como no ambiente estratégico sul-americano. A conferir.

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