Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, janeiro 09, 2007

Celso Ming - A galinha do vizinho




O Estado de S. Paulo
9/1/2007

Desde 2003, quando o governo Kirchner determinou nova desvalorização do peso argentino, alguns analistas brasileiros passaram a acreditar que o galinheiro do vizinho ostenta uma criação mais bonita. E querem que o mesmo trato seja adotado aqui, "para devolver a necessária competitividade às exportações brasileiras".

De lá para cá, a moeda argentina se mantém artificialmente desvalorizada à altura dos 3,10 pesos por dólar, e a brasileira, cada vez mais valorizada. E, no entanto, as exportações brasileiras crescem substancialmente mais do que as argentinas, conforme pode ser avaliado na tabela ao lado.

Antes de avançar, é preciso ponderar as circunstâncias. Em primeiro lugar, o exportador argentino não tem direito a todos os benefícios da desvalorização do peso porque o governo confisca parte do faturamento. Lá vigora o Imposto sobre Exportações (retención) que é de 35% a 40% sobre petróleo e derivados; de 20% sobre as principais commodities agrícolas (carne, soja, milho e trigo); e de 5% sobre os industrializados, inclusive veículos.

Em outras palavras, as exportações argentinas contribuem para a formação do superávit orçamentário de 1% do PIB e, nessas condições, cumprem papel importante na política fiscal.

Em segundo lugar, a desvalorização do peso tem também a função de levar a população argentina a desencalhar os dólares que retém no exterior ou que entesoura sob o colchão. Explicando melhor: ao longo da crise, eles amealharam dólares porque temeram a implosão do sistema de conversibilidade monetária que garantia a paridade cambial, à proporção de 1 peso por 1 dólar, o que acabou acontecendo. Na medida em que o banco central garante, por meio de compras regulares de dólares de cerca de US$ 10 bilhões por ano, uma desvalorização cambial ainda maior do que a que seria imposta pelo mercado, o argentino não tem mais razões para manter guardados esses dólares como reserva de valor.

Em terceiro lugar, a forte desvalorização do peso garante uma proteção extra ao produto industrial no mercado interno, na medida em que o importado chega aos portos argentinos mais caro em pesos.

Alguns economistas e empresários brasileiros, os mesmos que invejam o sistema argentino, torcem para que o sistema seja copiado aqui. Sugerem que, além da desvalorização do real, seja instituído um confisco sobre as exportações de produtos do agronegócio e da mineração. É claro, as exportações de manufaturados ficariam livres da facada. As receitas obtidas por essa taxação seriam usadas na compra de dólares pelo Banco Central, de maneira a garantir o câmbio satisfatoriamente desvalorizado.

O pressuposto dessa idéia é o de que a "excessiva valorização" das commodities agrícolas e minerais (especialmente minério de ferro e petróleo) no mercado internacional, graças ao efeito China, está derrubando o dólar no câmbio interno e, assim, estragando o pesqueiro da indústria nacional. É o que se chama de doença holandesa. Por isso, caberia essa proteção extra, para defender empregos e o mercado interno contra o avanço asiático.

As estatísticas não confirmam o diagnóstico. As exportações de manufaturados correspondem a 54,3% do total e, no ano passado, cresceram 15,6% (mais do que as exportações argentinas, que ficaram nos 12,2%). Ou seja, com exceção de alguns poucos setores, como os de calçados, têxteis e móveis, o dólar mais barato não está minando as exportações do Brasil, como se diz.

E, cá entre nós, além de tecnicamente injustificável, a proposta de impor um confisco sobre as exportações do agronegócio não teria nenhuma viabilidade política.

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