O Globo |
9/1/2007 |
Ilmo. governador do Estado do Rio de Janeiro Venho por esta colocar humildemente minha colher na sopa de bode preto que o Rio virou. Venho também desejar que o senhor consiga interromper os desastrosos 40 anos de populismo sinistro que nos afligiram. Há uns cinco anos, critiquei-o na TV, dizendo que o senhor, jovem, poderia ser mais "romântico", mais idealista e menos ligado a manobras fisiológicas da Alerj, sendo filho de um carioca imenso, que sempre defendeu a grandeza espiritual do Rio. Hoje, romanticamente, confio no senhor. Confio mesmo; vejo determinação em seu rosto. E é até bom que o senhor tenha lidado com as lacraias da Alerj, pois há que conhecer a doença para ser sadio. O Rio é hoje um labirinto bárbaro de corrupção e ineficiência burocrática, um espúrio casamento entre bem e mal. Estamos diante de um estado quebrado, soterrado por escândalos que se embrenham em mais de R$150 milhões entregues a ONGs fajutas, em perdas de fundos de pensão como a Prece (R$300 milhões), tudo embrulhado em R$17 milhões de fraldas geriátricas compradas por preços triplicados - o legado do casal Garotinho. O Rio torce pelo senhor. É justo que o senhor queira aparecer na mídia como uma alternativa política nova. Mas, não faça isso apenas por esperteza. Seja romântico. Não aja pelos caminhos mapeados do conchavo e do cochicho - saiba alternar prudência com imaginação. A barbárie, a corrupção e a estupidez ganharam contornos tão "originais" no Rio, quase uma cultura separada, que só gestos corajosos, até temerários, podem ajudar. Não há jurisprudência para os crimes atuais. São pavorosamente novos. Novas táticas têm de surgir. Mas espero que o senhor não seja voluntarista nem auto-suficiente. Machismo não resolve. Enquanto procurarmos uma "solução" para o crime no Rio, não haverá solução. Não haverá solução enquanto não entendermos que todos somos parte do problema: eu, o senhor, a polícia, a burocracia, as Forças Armadas, governos central e estadual. "Solução" é um conceito obsessivo e superado; só um processo amplo, multidisciplinar, um processo lento, caro, poderá minorar esta tragédia imunda que nos aflige, caindo de 500 favelas abandonadas na lama e financiadas pela cocaína. Admiro sua disposição urgente de ir às causas do crime e buscar uma ajuda federal. No entanto, nada que for truculento, ansioso, atabalhoado, poderá resolver. Temos de conter as consequências, tentando reparar as causas. O Lula acertou ao dizer que vai tratar esses horrores com a lentidão dos procedimentos comuns. Isso porque nós ainda falamos dos criminosos como se fossem "desviantes" de nossa moral, como gente que se "perdeu" da virtude e caiu no "mundo do mal". O que surgiu foi uma nova sociedade periférica, feita de fome, rancor e desejo de consumo. Houve uma sinistra "modernização" na miséria e um atraso no poder público. Não adianta defendermos a "normalidade" de nosso sistema, pois não há normalidade alguma. Estamos no fundo da vergonha; hoje discutimos se as milícias "mineiras" são "boas" ou "más", se criminosos do "bem" matando os do "mal" resolvem nosso vazio policial ou se isso traria mais vagabundos para o assalto no asfalto. A que ponto chegamos... Nós é que temos de nos reformar, subverter nossas cabeças, nossas polícias, nossos poderes. Precisamos de uma urgente autocrítica de nossa ineficiência. A população tem de ser convocada pelo senhor, para participar ativamente, senão ficaremos no velho vício da reclamação ou em inócuos abraços de roupa branca na Lagoa. As causas da violência sempre estiveram aí, há cem anos, como uma bomba de retardo, uma mina enterrada. Só agora ficaram visíveis. Os criminosos estão expondo nossa absurdíssima incompetência. Temos de aprender com os criminosos suas táticas, pois eles têm a mesma vantagem dos terroristas - não têm rosto e ninguém sabem de onde vêm. Eles são microempresas privadas, filiais da multinacional do pó. Nós somos o Estado elefantino. Eles agilizam métodos de gestão; nós trabalhamos com administração do século XIX. Eles são rápidos e criativos. Nós somos lentos e burocráticos. Eles lutam em terreno próprio; nós, em terra estranha. Eles estão no ataque. Nós, na defesa. Nós nos horrorizamos com eles. Eles riem de nós. A droga e as armas vêm de fora - eles são "globais"; nós somos regionais. Eles não temem a morte. Nós morremos de medo. A luta contra o crime não é mais uma luta policial; não é mais a Lei contra o Pecado; tornou-se um problema de Estado-Maior, sim. Trata-se de uma calamidade pública, como um terremoto. Acho sim, que os militares têm de entrar na questão. Coronéis e generais deviam traçar estratégias conjugando repressão e conscientização, juntamente com sociólogos, urbanistas. Creio, governador, que deveria haver uma espécie de PPP, de parceria público-privada, com empresários, pois a máquina do estado sozinha não dá conta. Creio que deveria haver uma campanha nacional para atrair investimentos para o Rio. Creio que tinham de ser criados "grupos executivos" desenhados por homens competentes sobre o assunto, homens como o coronel José Vicente da Silva, do Instituo Fernand Braudel, ou Luis Eduardo Soares, que fizessem um "by-pass" eficiente cortando o labirinto burocrático podre, como fez JK. Acho que temos de entrar nas favelas, não com festinhas odontológicas provisórias, mas para ficar, integrar. O que o revolucionário programa de TV "Central da periferia" faz com a cultura, o governo tinha de fazer com o aperfeiçoamento da vida social. O programa favela-bairro foi das poucas coisas decentes planejadas até hoje. Como anda? Demora muito? Sim. Mas, se levamos cem anos armando essa bomba, leva tempo para desativá-la. Será que o senhor vai conseguir? Será que não vai cair na inércia do hábito, do dia-a-dia entorpecido da política regional? Espero que consiga, senão isso vai virar uma palestina suja, uma cisjordânia endêmica. Espero, de coração, que o senhor consiga aproximar o Rio da cidade com que seu pai sempre sonhou. Estou às ordens, no que puder ajudar. Boa sorte. |
Entrevista:O Estado inteligente
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