Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 05, 2006

VEJA:Uma vitrine para o mundo


Uma vitrine para o mundo

Com obras monumentais realizadas em
tempo recorde e campanhas patrocinadas
pelo governo para ensinar boas maneiras
à população, a China quer aproveitar as
Olimpíadas de 2008, que irá sediar, para
impressionar o planeta com seu projeto
de grandeza


Monica Weinberg

 

Divulgação
O CUBO E O NINHO
O novo ginásio para natação, batizado de Cubo Aquático, e o Estádio Nacional, que ganhou o apelido de Ninho de Andorinha: a maquete dá uma idéia do efeito dramático das obras que irão deslumbrar o público

O ano é 2008, a cidade é Pequim e a China está em festa por sediar, pela primeira vez, os Jogos Olímpicos. Quem se animar a fazer a viagem pode se preparar para um espetáculo jamais visto. Primeiro impacto: o desembarque é num aeroporto magnífico, em formato de duas gigantescas letras ípsilon, que vistas do alto podem lembrar tanto o ideograma chinês para "humano" quanto um dragão. Se for à noite, ele estará iluminado pelas cores imperiais, vermelho e dourado. Dá para aproveitar a vista sem pensar no custo – 2 bilhões de dólares. Depois, é seguir por uma auto-estrada moderníssima e escolher qual dos quinze – repetindo, quinze – novos estádios olímpicos gostaria de ver primeiro. Esta é fácil: desde que atletas gregos corriam nus pelas pistas de Olímpia, nada no mundo esportivo se compara ao Estádio Nacional, um delirante exercício de desmaterialização do aço em que 24 colunas de 1 000 toneladas cada uma sustentam sem nenhum esforço aparente o emaranhado metálico que envolve a estrutura preparada para receber 91 000 espectadores. Atravessando a esplanada, um espantoso quadrado azul parece criar o efeito contrário: solidificar a água. A idéia do "cubo aquático", ou Centro Nacional de Esportes Aquáticos, é exatamente esta, provocar a ilusão de que é feito de água.

Todo país ascendente usa as Olimpíadas como uma espécie de megacomercial em que apresenta suas credenciais para se sentar à mesa dos poderosos. Foi assim com o Japão, em 1964, e com a Coréia do Sul, em 1988. Como a China não pretende apenas um lugar entre os ricos, mas fincar pé na cabeceira, o que está fazendo para os Jogos de 2008 supera amplamente todos os exemplos anteriores. A enorme quantidade de dinheiro em caixa – mais as contribuições do Comitê Olímpico Internacional –, a fúria construtiva que assola o país e a prioridade absoluta conferida ao projeto olímpico combinam-se para imprimir a Pequim uma transformação que os especialistas comparam, por seu volume e rapidez, à reurbanização de Paris no século XIX.

 

Paulo Vitale
MARCHA, SOLDADO
A seleção nacional de ginástica artística posa para a foto durante o treino: sob pressão de fazer a China chegar ao pódio olímpico, as ginastas têm a vida controlada noite e dia pela técnica. Yan Yan, a última da fila, erra um exercício e chora. "Vivo no limite físico e psicológico", diz

A cidade está sendo redesenhada por arquitetos estrangeiros e jamais recebeu tanto dinheiro do governo em tão pouco tempo: estima-se que 40 bilhões de dólares serão despejados na capital chinesa até 2008. Pequim é uma cidade cheia de contradições. Tem um dos conjuntos arquitetônicos mais sublimes do mundo – a Cidade Proibida, o complexo imperial erguido durante a dinastia Ming, há quase seis séculos – e alguns dos exemplos mais desanimadores do estilo construtivo "socialista". Os projetos olímpicos correm o risco de aumentar o efeito "salada de frutas", por sua diversidade, mas certamente pertencem à escola arquitetônica do altíssimo efeito dramático. Só de imaginá-los prontos, iluminados – o Estádio Nacional terá, por dentro da estrutura de aço, um "coração" vermelho, enquanto o centro de natação refulgirá à noite, para aumentar a ilusão de que flutua – e transmitidos para todo o planeta já dá uma idéia de quanto a China está investindo na imagem de superpotência econômica e esportiva.

As novas instalações olímpicas explicam apenas uma parte da floresta de guindastes espalhada por Pequim. A outra parte está em operação, noite e dia, para tirar do papel uma interminável lista de pontes, viadutos e estradas. Alguns desses projetos seriam um dia executados no rastro do explosivo crescimento econômico do país, mesmo que a China não se tornasse sede olímpica. A diferença é que, com os Jogos, as obras são realizadas, todas ao mesmo tempo, a um ritmo jamais visto. Fora os estádios, o novo aeroporto e um teatro de 700 milhões de dólares, o metrô ganhará outras quatro linhas e estão sendo erguidos mais 142 hotéis de padrão internacional. O objetivo do governo é terminar todas as obras olímpicas no ano que vem, para não correr o risco de nenhum atraso.

 

Paulo Vitale
RECRUTADO AOS 6 ANOS
O atleta Yang Wei, da equipe chinesa de ginástica olímpica, diz não ter idéia de como é viver fora do ambiente esportivo na China: ainda no jardim-de-infância, um treinador achou que ele tinha força acima do comum nos braços e o colocou num time de ginastas mirins, do qual saltou para a seleção nacional. Ele ganhou uma medalha olímpica em Sydney e retornou à China festejado como herói, o que rendeu à sua família uma boa casa presenteada pelo governo. "Já cheguei a pensar em ter uma vida mais normal, mas se abandonasse o esporte me sentiria um traidor da pátria", diz

As obras impressionam pela quantidade e pela modernidade, mas todos os velhos tiques dos regimes comunistas transparecem na obsessão olímpica que tomou conta do país. Está em curso, inclusive, uma campanha nacional de "reeducação" – no sentido de ensinar bons modos ao povo, para não fazer feio perante os 800 000 estrangeiros esperados para os Jogos. "Os chineses devem melhorar suas maneiras e tratar bem os turistas", resume Zhu Jing, do comitê olímpico. Nas principais ruas de Pequim, cartazes orientam os pedestres a não cuspir – bem, escarrar seria a definição mais precisa – em locais públicos, hábito que vem refluindo na China. Anúncios veiculados no rádio pedem às pessoas que respeitem a fila, outro conceito em implantação no país, e os motoristas de táxi estão sendo convencidos a trocar os velhos Peugeot barulhentos por carros novos. Entre as medidas que mais causam curiosidade nos moradores dos bairros antigos que escaparam à onda atual de modernização estão a reforma e a construção de 4 000 banheiros públicos, projeto que deve consumir mais de 50 milhões de dólares do orçamento da cidade. A meta é melhorar as instalações sanitárias nas áreas onde ainda são coletivas e disseminar o uso de toaletes ocidentais, relativamente raros na China.

Com 63 medalhas nas últimas Olimpíadas (32 de ouro, dezessete de prata e catorze de bronze), a China naturalmente sonha passar do segundo para o primeiro lugar, desbancando os Estados Unidos. Nesse esforço, aflora com vigor redobrado o método de fabricar atletas em massa. Em qualquer lugar do mundo, o treinamento de ginastas é um dos exercícios mais rigorosos a que um ser humano pode ser submetido – e em poucos lugares é tão exigente quanto na China. VEJA acompanhou uma sessão de treinos da equipe de ginástica artística. As seis meninas só saem do alojamento para a rotina de treinamentos. À noite, passam pela fiscalização da técnica, que verifica se estão dormindo antes das 22 horas. Durante o ensaio de uma das coreografias, Yan Yan, de 17 anos, comete dois deslizes e ouve a bronca da técnica, que se faz passar por um jurado russo: "Se eu sou aquele russo, tiro 0,3 ponto por essa perna baixa". A menina tem de esticar a perna no alto e manter-se imóvel nessa posição por um minuto. Lágrimas lhe brotam dos olhos. "Sou testada no meu limite físico", diz Yan Yan. "Mas, se conseguir ajudar a China a ser a número 1, terá valido a pena."

 

Claro Cortes/Reuters
REEDUCAÇÃO SANITÁRIA
A reforma e a construção de 4 000 banheiros públicos em estilo ocidental fazem parte de um pacote de obras que consumirá 40 bilhões de dólares e vai transformar a cidade de Pequim: Olimpíadas acirram tiques comunistas

Em todos os outros setores da sociedade chinesa observa-se, em graus variados, uma flexibilização em relação ao passado "revolucionário". Nos centros esportivos, o relógio parece parado no passado. Nada é mais comunista no país hoje do que a preparação para as Olimpíadas. Nos tempos da Guerra Fria, o comunismo tentava utilizar os Jogos para demonstrar a superioridade de suas sociedades. Na União Soviética, na finada Alemanha Oriental e na China, imperava a filosofia de que vencer o mundo capitalista nas competições de atletismo, natação ou lançamento de dardo era uma prova de força de sua ideologia sobre os ocidentais decadentes. "A China quer provar que virou uma superpotência econômica vencendo os Jogos. É, sem dúvida, um resquício dos tempos de Mao", diz a pesquisadora Zhao Yu.

O peso da exigência política recai sobre atletas como Yang Wei, 26 anos, e Cheng Fei, 18, da seleção nacional de ginástica olímpica, ambos levados a uma escola de esportes por ter aparentado boa flexibilidade por volta dos 6 anos, quando brincavam no pátio de um jardim-de-infância. Os dois ginastas se tornaram vizinhos num alojamento patrocinado pelo governo. Cheng Fei, a moça, tem a aparência exausta e confessa estar "sob profundo stress". "Não posso namorar nem usar o celular e quase não vejo a luz do dia", contabiliza ela. Yang Wei, o rapaz, que ganhou medalha de prata nos Jogos de Sydney, conta que já pensou mais de uma vez em abandonar o esporte, mas rapidamente desistiu. "Não me sinto livre para fazer isso. Seria uma traição à pátria. Ficaria malvisto em meu país", diz. Apesar dos avanços, a liberdade individual ainda é um conceito pouco difundido no país – especialmente quando o que está em jogo é a imagem que a China quer passar ao mundo.

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