Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 05, 2006

VEJA Revolução na sala de aula


Revolução na sala de aula

No projeto de se transformar em superpotência,
a China copia tudo o que deu certo no Ocidente e
investe na formação de um exército de cientistas


Monica Weinberg


Antonio Ribeiro
TREINADOS PARA COMPETIR
Aos 9 anos, Huang Kai Zhao (à esq.) e Wang Yu Jiao são campeões no prestigiado concurso nacional de caligrafia: sob pressão, as crianças varam madrugadas para manter a liderança no ranking

Graciosos, alegres e esforçados, os pequenos Wang Yu Jiao e Huang Kai Zhao, mostrados na página anterior, são o retrato de uma China que passa por uma revolução em sala de aula sem precedentes no mundo. Ela é única por combinar velocidade e dimensão espantosas a um sistema de meritocracia que alia os princípios da livre competição à mão bem visível do Estado – um híbrido tipicamente chinês. Kai Zhao, o garotão bochechudo, e Yu Jiao, a menina de trancinhas, ambos de 9 anos, tornaram-se celebridades do mundo escolar ao conquistar, respectivamente, o primeiro e o segundo lugares no campeonato nacional de caligrafia chinesa. O concurso mobiliza cerca de 3 milhões de crianças e jovens que varam madrugadas e ficam com calos nas mãos para traçar no papel um ideograma perfeito, prática que exige, além de habilidade natural, muito treinamento e disciplina. Eles são pressionados pelas escolas para conseguir uma boa colocação no ranking nacional. Os vencedores ganham aulas extras e são aplaudidos em cerimônias que reúnem estudantes do país inteiro. "É ótimo ser o número 1 na China", orgulha-se Kai Zhao, o campeão. O estímulo à competição e ao aprimoramento dos talentos individuais ajuda a entender a revolução na educação chinesa, totalmente dirigida para transformar o país numa fábrica de gente qualificada e competitiva para atuar na economia global. O cientista Guo Huadong, secretário-geral da Academia Chinesa de Ciências, explica o esforço de forma concisa: "A China depende disso para ser a maior economia do mundo".


Paulo Vitale
CÉREBROS EM EVIDÊNCIA
O professor universitário Zhong Fun Liu compõe a elite de cientistas que dispõem de mais verbas do governo para fazer pesquisas em áreas de alta tecnologia: ao receber uma proposta financeira irrecusável e a garantia de ter sob seu comando um laboratório de primeira linha, ele decidiu retornar à China depois de uma temporada de dez anos no Japão

A velocidade da revolução educacional acompanha o ritmo do espantoso crescimento econômico. Em 1976, a China emergia do período de trevas da Revolução Cultural (que, como se sabe, era inteiramente anticultural), durante o qual a atividade intelectual do país ficou paralisada, professores universitários foram forçados a criar gado e as escolas se tornaram centros de adoração ao líder Mao Tsé-tung (LEIA RELATOABAIXO). Nessa época, os índices de analfabetismo beiravam a casa de 60% – um desastre para um país com aspirações a potência mundial. Em apenas três décadas, a China conseguiu erguer um sistema de ensino eficiente o bastante para emplacar duas de suas universidades entre as melhores do mundo (segundo rankings mundiais que medem a produção acadêmica), formar nada menos que 1,2 milhão de pesquisadores com doutorado e reduzir o analfabetismo a 4%. Isso num universo de dimensões chinesas. As salas de aula do país absorvem 240 milhões de estudantes de todos os níveis – uma vez e meia a população inteira do Brasil. É a maior concentração de alunos do mundo. Conclusão: mesmo partindo de uma situação de atraso catastrófico, há três décadas, e lidando com as complicações de uma engrenagem de proporções gigantescas, a China conseguiu alcançar uma produção acadêmica expressiva em todos os níveis de ensino. Está na frente do Brasil.

Um dos pontos que mais chamam atenção na fórmula chinesa é a concentração de esforços na formação de gente capacitada a produzir alta tecnologia. O planejamento é de longo prazo. Nos próximos quinze anos, por exemplo, o país terá dobrado a fatia do PIB que destina à área de pesquisa e desenvolvimento, chegando a 2,5%. O investimento é dirigido para as áreas da ciência teoricamente mais capazes de resultar em inovações tecnológicas de aplicação comercial. São onze as áreas escolhidas, entre elas a nanotecnologia e a tecnologia da informação. Outro método comum é distribuir dinheiro farto aos cientistas cujos laboratórios apresentam produção acadêmica de alto nível, segundo medidores objetivos. Isso desperta uma competição acirrada. O professor Zhong Fun Liu, 44 anos, chefe em um laboratório na Universidade de Pequim, é um dos 164 cientistas tidos como "de elite" na China – o que o faz receber mais verbas. Sua rotina para manter a dianteira ilustra o que se passa no cotidiano do mundo acadêmico chinês. Zhong chega à universidade às 7h30 e só deixa o laboratório perto da meia-noite, inclusive aos sábados. "Quem não trabalha duro na China fica para trás – e sem dinheiro para a pesquisa", resume.


AFP
MÁQUINA UNIVERSITÁRIA
A cena mostrada na foto acima, em que aparece uma turma de alunos recém-formados na Universidade de Anhui, prolifera por toda a China: nos últimos cinco anos, o número de jovens na faculdade quadruplicou. Essa expansão só foi possível porque o governo começou a cobrar mensalidades. O desafio agora é promover um salto de qualidade no nível de ensino

Outra estratégia que impulsiona o progresso do ensino é atrair de volta pessoas que deixaram o país, sobretudo nas décadas de 70 e 80, para estudar e trabalhar no exterior. Elas saíram de uma China na qual o brilhantismo era malvisto (e mesmo punido, durante os anos da Revolução Cultural) e onde um cientista no topo ganhava no máximo o equivalente a 100 dólares por mês. Estão desembarcando num país inteiramente mudado. Na novíssima China, os bons cientistas ostentam status de celebridade. Recebem convites para participar de programas de televisão de grande audiência e chegam a ser parados na rua para distribuir autógrafos. O salário médio de um pesquisador chinês é hoje de 2 000 dólares. Além do salário, pesam as boas condições de trabalho e o prestígio, como ocorreu com Fei Luo, 40 anos, doutor em fisiologia. "Nos Estados Unidos, eu era apenas mais um cientista. Na China, estou entre os primeiros", diz Luo. A academia não é o único destino para os que retornam. Eles também recebem incentivos para abrir a própria empresa, como acontece em Suzhou, fervilhante pólo industrial a 70 quilômetros de Xangai. Ali residem 1 000 chineses que têm no currículo uma passagem pelo exterior. Em comum, eles voltaram à China motivados por subsídios para a compra da casa própria e generoso alívio nos impostos para montar empresas. Todas voltadas para o mercado high-tech.

A China reúne tantas especificidades que uma comparação com o Brasil, ou qualquer outro país, pode parecer forçada. Visitar um grande centro de ensino permite vislumbrar um dos muitos paradoxos chineses: os professores são bons, os equipamentos, modernos, e os alunos, comparáveis, em padrões de comportamento, aos de países desenvolvidos. Mas existe, sim, o controle da livre expressão típico dos regimes autoritários, a internet é censurada e não se fala em assuntos tabus, como a explosão estudantil que redundou no massacre da Praça da Paz Celestial, há dezessete anos. O próprio ensino ainda padece de excesso de disciplina e verticalismo, que limitam o risco e a inventividade, fatores que contam no sucesso das grandes universidades ocidentais. Ainda assim, sobressaem os méritos que merecem ser ressaltados. Criar mecanismos para esculpir talentos individuais e recompensá-los é um deles. Outro é estabelecer um laço estreito entre a produção acadêmica e a realidade da economia – no caso da China, com maciço investimento em cérebros voltados para a área tecnológica. A terceira lição chinesa é a importação, sem restrições ideológicas, de tudo o que deu certo nos países que têm mais sucesso na formação de capital humano. É por essa razão que o governo continua a enviar cientistas para estudar nos Estados Unidos e na Europa. Por isso, a China também decidiu enxugar em 40% o número de universidades públicas do país e cobrar mensalidades dos estudantes nas faculdades públicas. "Aprendemos com os melhores do mundo: não dá para ter um ensino superior gigante e arcar com os custos de tantos alunos", diz Guo Xiangyuan, do Ministério da Educação chinês.


Paulo Vitale
"LUCRO, LUCRO!"
A executiva Cascade Huan é diretora numa das escolas de negócios mais procuradas do país, a Cheung Kong Graduate School of Business: com currículo semelhante ao das americanas, tem como alunos diretores de grandes empresas e quadros do alto escalão do Partido Comunista. Ninguém quer ouvir falar de Marx. "O objetivo dos chineses é aprender a ganhar dinheiro"

Dentro da tradição oriental de investir tudo na educação da prole, diz-se que o chinês de classe média tem três sonhos: casa própria, carro e ensino no exterior para o filho. Quando não é possível mandar o filho estudar fora, traz-se o ensino de fora para o filho. Um exemplo é o sucesso da rede de escolas de modelo canadense aberta pelo empresário Francis Pang, que tem a cidadania dos dois países. Em uma visita a um desses colégios, em Pequim, tem-se a sensação de estar em uma típica escola do Canadá. A literatura de sala de aula é canadense, só se ouve o inglês nos corredores e os estudantes usam camisetas com dizeres como "I love Niagara Falls". Pang, que acrescentou um original toque decorativo ao ambiente espalhando réplicas gigantes de clássicos da literatura mundial, diz: "Importei o método do Canadá. A procura é gigantesca".

Outro sinal de popularidade do modelo estrangeiro na China é a proliferação dos cursos de negócios para executivos – os MBAs. Eles foram autorizados pelo governo apenas em 1991. São hoje uma febre nacional. De acordo com um estudo da consultoria McKinsey, até 2010 a economia chinesa demandará pelo menos 75 000 executivos de padrão internacional. Hoje o país tem apenas 5 000 profissionais assim para ocupar cargos de comando. Para tentar suprir a demanda, os chineses fizeram parceria com as melhores escolas de negócios do mundo, entre elas a da Universidade Harvard, a do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e a Wharton – esta última patrocinada pelo bilionário Li Ka Shing, de Hong Kong, que ocupa a décima colocação no ranking dos homens mais ricos do mundo, feito pela revista Forbes. A escola do bilionário – a Cheung Kong Graduate School of Business – está instalada em um moderno edifício no qual ele, coerentemente, também mandou construir um shopping center, com lojas de grifes como Ermenegildo Zegna e Louis Vuitton. É nesse ambiente que os alunos assimilam o jargão corporativo da espécie e focam nos resultados. "O objetivo dos chineses é aprender a ganhar mais dinheiro", resume a diretora Cascade Huan. Numa das aulas, um professor pergunta: "O que vocês mais querem?". Os alunos respondem num coro entusiasmado: "Lucro! Lucro! Lucro!".


Paulo Vitale
EDUCAÇÃO S/A
O empresário Francis Pang, que tem negócios nas áreas têxtil e de eletrônicos, farejou uma oportunidade de diversificar investimentos construindo uma rede de escolas inspirada no modelo canadense: ele, que viveu na China nos tempos da Revolução Cultural, diz ainda ficar surpreso com o fascínio chinês pela cultura ocidental. "A China perdeu o preconceito"

É estranho como um país tão voltado para o "lucro, lucro, lucro" ainda tenha resquícios do velho comunismo em algumas de suas práticas. No ambiente universitário, por exemplo, as escolas de marxismo ainda são responsáveis por cinco disciplinas "públicas" obrigatórias para todas as carreiras. Nelas, os estudantes recebem informações sobre as últimas diretrizes do Partido Comunista e lêem O Capital, de Karl Marx. Outro sinal da velha China está presente em relatos de professores que se sentem vigiados e com medo de perder o emprego caso falem além da conta. "Sei que posso receber uma advertência se disser algo que contrarie os interesses do partido", diz um professor da Universidade de Pequim. Ele lembra que um colega seu foi demitido por ter dado um tom "crítico demais" à análise sobre Mao Tsé-tung. O medo empobrece a produção acadêmica chinesa, sobretudo na área das ciências humanas. Os números mostram que a China ainda precisa avançar muito nesse setor para obter o destaque desejado no cenário internacional.

O fervor patriótico também é cultivado sistematicamente. Na escola Shijia, uma das melhores no bom sistema público da China, crianças de 10 anos assistem a um filme sobre a importância das fontes de energia para o projeto nacional de tornar-se a maior potência do planeta. Outra classe aprende que os chineses criaram as tecnologias que resultaram no relógio mecânico movido a água e na pólvora. A exaltação dos feitos chineses, o culto à competição, o incentivo à meritocracia e a valorização do estudo são traços profundamente arraigados. Foram os chineses, afinal, que inventaram o concurso público – o conceito de que o acesso à burocracia deveria ser conseguido por capacidades intelectuais testadas em provas. Como tantos outros feitos, isso é creditado ao primeiro imperador, Qin Shi Huangdi, nascido em 259 a.C. Por volta do século VII, já estava consolidado o sistema de exames para o serviço público imperial, o Keju, cuja concorrência nunca foi igualada por nenhuma outra prova no mundo: no século XIX, chegou a ser de uma vaga para 1 milhão de candidatos. O desempenho nesses testes era a principal via de acesso a cargos públicos, bons salários, prestígio e poder numa sociedade altamente hierarquizada. Os vencedores tornavam-se mandarins, palavra que ganhou universalidade, como sinônimo de casta influente (também é assim que se define, nos idiomas ocidentais, a "língua comum" dos chineses). Hoje, a China moderna sonha reaver seu lugar na história colocando em prática um velho ditado confucionista que exalta a importância do estudo: "Se quiser ter prosperidade por um ano, cultive grãos. Por dez, cultive árvores. Mas, para ter sucesso por 100 anos, cultive gente".

 

O Brasil está atrás

A China vai melhor que o Brasil nos principais indicadores que medem o nível de educação e a produção científica *

 ChinaBrasil
Taxa de analfabetismo4% 10%
Taxa de jovens na universidade21% 19%
Graduados em carreiras
tecnológicas (por ano)
1 milhão94 000
Artigos publicados em periódicos científicos internacionais (em relação à produção mundial)5,9%1,8%
Ph.D. (por 100 000 habitantes)88 63

* Últimos números disponíveis, relativos aos anos de 2004 e 2005
Fontes: Ministério de Educação da China, MEC, ISI e Unesco

 "PERDI DEZ ANOS DA MINHA VIDA"

Em 1966, o professor Wang Sen Yui tinha 11 anos e conta que sua vida virou "uma história de horror". Era o início da Revolução Cultural na China. Wang foi separado dos pais e sua escola trocou as aulas por rituais de adoração a Mao Tsé-tung. A história do professor é semelhante à de milhões de chineses de sua geração. São raros, no entanto, os que falam tão abertamente sobre o assunto, como ele fez em seu relato a VEJA.

"Tinha uma infância feliz até a China embarcar na Revolução Cultural. O sítio onde meus pais plantavam milho foi confiscado pelos soldados comunistas, e eles receberam o rótulo de burgueses por terem sido proprietários de terra. Foram mandados a uma aldeia para trabalhar com os camponeses locais. Meus pais eram submetidos a torturas constantes e forçados a desfilar na praça da cidade com uma placa pendurada no pescoço: 'Sou burguês'. Eu fui morar com um tio em Pequim, onde continuei a freqüentar a escola. Ela tornou-se um braço da revolução. Quem dava aula eram os próprios alunos ou os camponeses mobilizados por Mao Tsé-tung. Trancávamos os professores dias a fio numa sala minúscula. Dávamos a eles um pedaço de pão por dia. Eram retirados da clausura apenas para passar por um ritual de humilhação. Nós os obrigávamos a usar chapéus de burro e imobilizávamos seus braços, para espancá-los. Jamais tive uma aula de física ou de química. A biblioteca foi queimada. Minha rotina escolar consistia em sair à rua rasgando cartazes coloridos, resquícios do regime burguês, e decorar o livro vermelho de Mao Tsé-tung. Repetíamos em voz alta, olhando para a foto do grande líder: 'Preferimos o capim de um país socialista à semente do capitalismo'. Quando o pesadelo terminou, em 1976, entrei na universidade e voltei a morar com meus pais. Eles tinham vergonha de mostrar as cicatrizes deixadas pelas torturas. Eu nunca superei a dor dessas lembranças. Perdi dez anos da minha vida. A China também."

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