Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 05, 2006

VEJA:A novíssima China


A novíssima China

A prosperidade é impressionante, as
reformas avançam e os chineses têm
o principal para melhorar mais ainda: a
confiança de que o futuro pertence a eles


Vilma Gryzinski

 

Paulo Vitale

Andar pelas ruas de uma grande cidade chinesa – e são tantas, e tão imensas – é testemunhar prodígios brotando, literalmente, da terra. O passeio pode começar diante dos gigantes de cimento e vidro: prédios de dimensões espantosas, projetos arquitetônicos de fazer cair o queixo, prefeituras que parecem shopping centers e shopping centers, bem, que parecem isso mesmo, mas se enfileiram , lado a lado, como uma interminável Grande Muralha do consumo. Mais adiante, começam as fábricas, e mais fábricas, e mais fábricas ainda, numa atordoante sucessão em que quase se pode ouvir o furor produtivo da economia que mais cresce, há mais tempo, no mundo. Contra esse cenário em permanente mutação, a paisagem humana causa impacto mais forte ainda. Não apenas pela visível e constante melhoria do nível de vida de um país que ao longo do catastrófico século XX passou por sofrimentos indizíveis, entre dilacerações internas, invasões estrangeiras, períodos de fome coletiva e experimentos comunistas alucinadamente radicais, deixando em seu rastro, a cada surto, mortos contados às dezenas de milhões. Não apenas pelos celulares grudados em todas as mãos, pelos tênis de qualidade em quase todos os pés, pelas cabeleiras – repicadas, eriçadas, aloiradas – que despontam entre os jovens, tornando-os imediatamente reconhecíveis como membros da comunidade global dos internetizados, plugados e descolados. Por trás de tantos sinais de progresso material, revela-se um terceiro fenômeno, sob a forma de um dos bens mais preciosos que uma nação pode ter: a confiança no futuro.

Essa mercadoria intangível não pode ser produzida nas indústrias que abastecem e assombram o mundo por sua prodigiosa capacidade, nem copiada pela incontrolável usina de falsificações, nem induzida pela propaganda oficial do regime, nominal e operacionalmente ainda comunista, por mais que este o faça com a constância e o método típicos do autoritarismo. A novíssima China – a nova foi assim rebatizada depois da vitória da revolução comunista, em 1949 – acredita que as coisas vão ficar melhores ainda por dois motivos simples: a vida de uma imensa massa humana já deu um grande e verdadeiro salto adiante e essa massa, mais uma parcela dos que ainda estão esperando ser incorporados a ela, encara o futuro com otimismo galopante. A experiência recente lhes dá razão. A "era das reformas" está perto de completar três décadas. Em escala chinesa, com uma história contínua de mais de cinco milênios, é menos que um piscar de olhos – mas o suficiente para que uma geração inteira de jovens só tenha experimentado seus efeitos benéficos. Desencadeado timidamente em 1978 por Deng Xiaoping, o processo de reformas foi como um terremoto ao contrário. Em lugar de força destrutiva, libertou a lendária energia empreendedora dos chineses, aprisionada pelo igualitarismo comunista e por uma economia dirigida formidavelmente ineficiente. Sob a denominação de "economia socialista com características chinesas", ou, numa variação mais bizarra ainda, "economia de mercado com características socialistas", a contradição funcionou. Desde o milagre de Deng, saíram da pobreza cerca de 400 milhões de pessoas, a maior massa humana a ascender de patamar, em menos tempo, em toda a história da humanidade.

 

Reprodução
Paulo Vitale
GIGANTESCO SALTO ADIANTE
A camponesa miserável, vestida de trapos, com os filhos desnudos e uma tigela de arroz – vazia – na mão, é um retrato das desgraças do passado. Mesmo na rica Xangai do começo do século XX, a polícia recolhia anualmente de 20 000 a 30 000 corpos de gente que morria nas ruas de fome ou de frio. Famílias e grupos de jovens com todas as marcas da prosperidade, fotografados no centro de Pequim, são o sinal mais evidente do progresso atual da China. Uma pesquisa de âmbito global confirma: os chineses são o povo mais otimista do mundo no momento. Nada menos que 81% estão satisfeitos com os rumos do país

Desde então, a economia de mercado – eufemismo pudico para capitalismo desenfreado – passou por um processo muito parecido com o roteiro clássico dos outros países asiáticos que se transformaram em potências. Numa primeira etapa, utilização de um imenso e esforçado exército de mão-de-obra baratíssima, produção de bugigangas a preços sem concorrência, atração em massa de investimentos estrangeiros, imbricação do Estado com a iniciativa privada. Como a China é a China, a arrancada adquiriu dimensões titânicas. O país onde há menos de trinta anos o salário de todo mundo correspondia a 20 dólares, os moradores das cidades tinham direito a um espaço designado pelo Estado de 6 metros quadrados cada um e o PIB era de 413 bilhões de dólares já passou à frente de potências tradicionais como o Reino Unido e a França. Com um PIB de 1,9 trilhão registrado no ano passado, é a quarta economia do mundo, superada apenas por Estados Unidos, Japão e Alemanha. As perspectivas futuras são mais assombrosas ainda. Em dez anos, se continuar crescendo nesse ritmo, a economia chinesa poderá empatar em tamanho com a americana. Numa data projetada para 2050, atingirá 44 trilhões, já solidamente à frente dos Estados Unidos 

O momento atual é fascinante por estar justamente na decolagem rumo ao patamar que separa os países em crescimento dos desenvolvidos de verdade. Embora persistam em larga escala as condições que pouca gente na China ainda se lembraria de chamar de acumulação primitiva de capital, as fatias mais adiantadas da economia já miram em produtos high tech, de alto valor agregado, enquanto o governo promove a formação em massa de cientistas e faz uma caçada mundial aos cérebros, de forma a aglutinar a matéria-prima que move o desenvolvimento avançado (o sistema educacional chinês é retratado na pág. 122). A primeira leva de novos milionários ainda se exibe em "castelos" franceses copiados tijolo por tijolo e toma conhaque de 2 dólares a garrafa, mas já desponta uma camada de ricos e chiques que estão aprendendo a desfrutar o ápice do luxo – o bom gosto despojado. "Como é possível trabalhar só por dinheiro? As pessoas precisam de inspiração", diz a beldade fotografada na página 111, JinR, uma self-made woman que contraria o senso comum segundo o qual os chineses só pensam em dinheiro – por sinal, extensamente confirmado fora do círculo dos novos chiques. As universidades chinesas produzem anualmente uma legião de 1 milhão de engenheiros, mas profissões típicas das sociedades da abundância – designers, fotógrafos, estilistas e até tatuadores – se propagam entre os jovens

 

Reprodução
Antonio Ribeiro

VIVA A REVOLUÇÃO COMERCIAL
A Revolução Cultural foi uma briga que começou no interior do Partido Comunista Chinês. Para combater os "reacionários", Mao Tsé-tung promoveu o suplício de dezenas de milhões de pessoas e a destruição de tesouros históricos. Na foto à esquerda, estudantes, usados como massa de manobra, arrebentam a marretadas um templo milenar. Na foto à direita, jovens funcionários de um restaurante temático em Shenzen – sim, o mote é a Revolução Cultural – vestem-se como membros da Guarda Vermelha. O nome do restaurante é Primeira Brigada, Todos Felizes e a decoração reproduz a propaganda da era maoísta. Os pratos, ao contrário, são fartos

É claro que nada que acontece no país que combina a maior população do planeta – 1,3 bilhão, ou 20% de todos os humanos – com a aberração de um sistema político comunista comandando uma explosão capitalista sem precedentes e, ainda por cima, a economia mais turbinada da história deixa de ser cercado de ansiedade, alto risco ou previsões catastrofistas. Os problemas por resolver são tão imensos, ou maiores ainda, quanto os já resolvidos e vão da magnitude dos cerca de 800 milhões de chineses que ainda vivem no campo – e, como em qualquer outro lugar do mundo, sonham em sair de lá e ter uma vida melhor nas cidades – às minúcias do delírio de controle absoluto de um regime que mantém um exército de anti-hackers para impedir o acesso, pela internet, a termos tão perigosos quanto liberdade e democracia. As debilidades inerentes à economia chinesa, o sistema financeiro de alta vulnerabilidade e um modelo de crescimento que, dizem os especialistas, não pode durar para sempre assustam tanto quanto sua voracidade. O raciocínio é o seguinte: se a China desmoronar, a economia mundial vai junto; se continuar dando certo, é a ecologia que entrará em falência. O ditado ressuscitado para explicar a teoria do caos – "O bater das asas de uma borboleta na China pode provocar um furacão do outro lado do mundo" – é evocado com sinal invertido. "Se todos os chineses tiverem luz elétrica", "Se metade deles comprar geladeiras", "Se 20% saírem dirigindo automóveis", ou alguma variação similar sempre seguida de previsões sombrias sobre destruição ambiental em escala planetária.

Produtos chineses fascinam o mundo ocidental há mais de 2 000 anos, desde que a rainha de uma potência decadente, Cleópatra do Egito, lançou em Roma a moda dos vestidos transparentes feitos de um raro e diáfano tecido. Desde então, a seda tornou-se uma obsessão da aristocracia européia, mas o remoto e fabuloso país que a produzia só voltou a reaflorar no imaginário ocidental no século XIII, com os escritos de Marco Polo. O deslumbramento com as dimensões, as riquezas, os refinamentos e o poderio comercial do distante Império do Meio era compreensível. Marco Polo vinha de Veneza, que, com 160 000 habitantes, estava no ápice como a maior cidade européia da época, e se instalou em Hangzhou, metrópole que tinha uma população calculada em 1,5 milhão. Tecnologias made in China como a bússola e a pólvora, além de técnicas de construção naval e de forja do ferro, constituíram a base material da era dos descobrimentos e suas formidáveis conseqüências, que empurraram a civilização ocidental para a situação de proeminência em que se encontra até hoje.

 

Reprodução
Paulo Vitale

SER RICO É CHIQUÉRRIMO
As mulheres ricas do passado, como a velha aristocrata fotografada em 1918, mal saíam de casa: os pés, que começavam a ser quebrados e enfaixados na infância, só permitiam um caminhar breve e vacilante. A empresária JinR, de 34 anos, na foto acima, andou com os próprios pés. Largou uma carreira como musicista, abriu uma pequena casa de chá e, quando os clientes começaram a pedir mais, assumiu a cozinha. "Usava meus lindos Issey Miyake para fazer comida", relembra ela, hoje dona de um restaurante espetacular. E as perspectivas do país? "É claro que o futuro da China é maravilhoso"

Essa China prodigiosa descrita por Marco Polo já era, na opinião de alguns historiadores, um império em declínio. O auge havia sido atingido durante os séculos dourados da dinastia Tang, que foi do ano 618 ao 907 da era cristã. "Era uma civilização supremamente confiante e extraordinariamente cosmopolita", descreveu no livro The China Dream o jornalista inglês Joe Studwell, que morou quase dez anos na China. "Sua sociedade combinava o budismo indiano, os passatempos cortesãos do Irã e uma curiosidade comercial em relação a bens e serviços estrangeiros, somada à supremacia chinesa em matéria de organização política, tecnologia e produtividade agrícola. A China estava tão à frente do resto do mundo que não precisava de nada dele." A era Tang entrou no ocaso levada pelos movimentos cíclicos da longa história chinesa: o poder central começa a se desfazer, os potentados regionais se fortalecem, espoucam rebeliões e logo se instala o mais temido dos perigos políticos, o caos.

Nesse oceano histórico de eterna expansão e contração, o momento mais lembrado, pelos paralelos que contém com o Ocidente, costuma ser o reinado do imperador Yong le, no começo do século XV. Enquanto os portugueses, em suas frágeis caravelas, se lançavam na exploração da costa leste da África, do outro lado do continente os mares eram dominados por uma fabulosa frota. No seu comando, o almirante Zheng He. Encarregado da missão de propagar o poder imperial e coletar tributos dos "bárbaros de além-mar", Zheng He fez sete viagens. A quarta, e mais ambiciosa, era composta de sessenta galeões, com 30 000 homens embarcados. Coerentes com o hábito da autocrítica cultural, historiadores ocidentais costumam exaltar como a frota chinesa era maior e tecnologicamente superior à de seus quase contemporâneos europeus. Mas foram os portugueses e espanhóis, em suas casquinhas de noz, que chegaram ao Oriente – e não vice-versa. Aprenderam a ir – e mais, importante, voltar –, começaram com entrepostos comerciais, criaram impérios marítimos. No processo, descobriram o continente americano. Mudaram o mundo. Apesar da insignificância de seus países de origem e do obscurantismo do catolicismo praticado na época, eram homens livres, movidos por um motor poderoso – a vontade de fazer bons negócios – e neles vicejava a semente do pensamento científico. Zheng He, apesar dos feitos heróicos e da força do império por trás dele, era um servo num império onde o gosto pelas inovações obedecia a caprichos pessoais do soberano. Menino muçulmano do interior, foi capturado, castrado aos 13 anos e colocado a serviço da corte – eram eunucos todos os altos funcionários da casa imperial, medida que nem assim conseguia impedir a corrupção, tão milenar quanto a história chinesa. Quando o imperador que o patrocinava morreu, seu substituto acabou com a aventura marítima, proibiu as expedições de qualquer tipo e baniu o comércio exterior. A frota fabulosa apodreceu e a China fechou-se em mais um período de "esplêndido isolamento".

Essa breve incursão histórica foi feita porque ajuda a tentar compreender algo do que vai na mente das multidões descritas no começo do passeio pela China metropolitana. A longa história chinesa, com seus períodos de glória e decadência, está cravada no inconsciente coletivo do país. Como qualquer povo, os chineses tendem a se achar melhores do que o resto da humanidade e, com tanto passado acumulado, vêm fazendo isso há muito mais tempo do que os outros. Esse sentimento de superioridade foi cruelmente destruído não só pelos "demônios brancos" que arrancaram nacos da China durante a fase de imperialismo puro e duro do século XIX como pelo detestado Japão, tradicionalmente visto como um subproduto inferior da civilização-mãe. Quando a propaganda maoísta abriu uma fresta, ruiu também a ilusão de que o regime comunista havia criado uma potência de primeira classe. Às vésperas do século XXI, ainda se passava fome em larga escala no país da revolução camponesa. A idéia de que a China não pode ficar para trás tem raízes profundas. Perguntadas pelos jornalistas de VEJA sobre o que esperam do futuro, várias dezenas de pessoas responderam o previsível ("Ganhar dinheiro", "Ter um bom emprego", "Uma vida melhor para meu filho", "Comprar um carro" ou sua variação mais ambiciosa, "Comprar uma Ferrari"). O inesperado foi ver quanta gente associa seus sonhos privados ao desejo universal de ver a China "reocupar seu lugar" no mundo e fala com fervor sobre o futuro. Alguns exemplos que aparecerão nas reportagens a seguir: "Tenho a sorte de estar vivo para ver a China tornar-se o país mais rico do planeta", Ying Wo, 19 anos, estudante de jornalismo; "A China é o país mais promissor de todo o mundo", Pan Shiyi, 42 anos, um dos maiores empreiteiros do país; "Meu sonho é ver a China se revitalizar e recuperar seu lugar de destaque. E que consiga deixar de ser um país em desenvolvimento antes da data prevista, de 2050", Yang Zhongqiang, 50, economista, vice-diretor da comissão de desenvolvimento da cidade de Tianjin, revelando o característico pensamento chinês de longo prazo. É essa convicção dos chineses de que o futuro pertence a eles que constrói – ou reergue – impérios.

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