Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 05, 2006

VEJA Prada da casa


Prada da casa

E também dos prédios comerciais e dos
projetos arrojados: o rei da construção
civil é moderno, elegante e badalado


Vilma Gryzinski


Paulo Vitale
O TAO DA CONSTRUÇÃO
Pan Shiyi é o tipo de empreiteiro que não se espera encontrar em lugar nenhum, muito menos na China. Simpatizante do taoísmo, a antiga tradição filosófica e religiosa chinesa, dá conselhos à Paulo Coelho sobre o caminho do sucesso: "É preciso acreditar"

Ele seria o vilão ideal num país onde os barões da construção civil já foram execrados até numa novela de televisão – ou seja, com autorização do governo comunista. Gananciosos, exploradores, especuladores, corruptos, destruidores de aldeias inocentes e construtores de porcarias que caem aos pedaços, literalmente, com pouco ou nenhum uso. Essas são as gentilezas dirigidas, só para começo de conversa, contra os donos do negócio mais visível – e lucrativo – da China. Com 42 anos, pequenino e vivaz, Pan Shiyi, que já foi chamado de "o rei de Pequim", pela quantidade de obras que espalhou pela cidade, não se encaixa de jeito nenhum no figurino de vilão. Ele é chique, cool, minimalista, exatamente como seus projetos – o oposto absoluto da ostentação novo-riquista que cobriu a China de abominações arquitetônicas. Tem uma imagem pública positiva, que cultiva com profissionalismo. Declara-se seguidor do taoísmo e registra, com um sorriso levemente irônico: "A vida espiritual é muito difícil para os ricos".

Mas a trajetória do improvável rei do cimento ilustra como a China se tornou um gigantesco canteiro de oportunidades e produziu, em poucas décadas, uma fornada de milionários que tiveram de aprender sozinhos a fazer tudo – de fechar o negócio mais banal a captar capital na bolsa, passando por todas as intrincadas, incestuosas e, para estrangeiros, impenetráveis "relações com o governo", expressão que normalmente significa um mar de problemas – e também aquilo mesmo que todo mundo está pensando. Pan Shiyi não usava Prada, não citava Confúcio e não tinha a menor idéia do que fosse arquitetura contemporânea quando se lançou na carreira empresarial num país onde isso ainda era novidade. Nascido miserável, num lugarejo remoto, filho de mãe inválida e pai politicamente desgraçado, ainda nos estertores da Revolução Cultural, contava, porém, com dois atributos vitais: audácia e um sócio esperto (este encarregado do primeiro empréstimo, da primeira autorização oficial e de tudo o mais que todo mundo sabe o que significa).


Divulgação

À SOMBRA DA MURALHA
É difícil imaginar uma localização melhor para uma casa de campo na China: junto da Grande Muralha. Foi lá que Pan Shiyi construiu o condomínio mais arrojado do país. A casa acima – um "corredor" sem paredes divisórias – foi projetada por Gary Chang, de Hong Kong

Começou em Hainan, uma das primeiras "zonas econômicas especiais", aquelas onde se testava a economia de mercado, comprando e vendendo imóveis. O negócio acompanhou o ritmo alucinado da economia em expansão. Pan revelou aptidão excepcional para, pressentindo o estampido, pedir preços cada vez mais altos por propriedades compradas na baixa – especulação é o nome disso, mas ninguém associaria prática tão vulgar a figura tão elegante. Hoje, de seu escritório em Pequim (pequeno e simples, cercado de espaços enormes e vazios, apenas salpicados, aqui e ali, de obras de arte modernésimas), comanda um império feito de prédios – comerciais, residenciais ou mistos – que às vezes lembram uma versão chinesa de Brasília, às vezes evocam filmes de ficção científica. O nome da empresa é igualmente sofisticado, Soho China. Ele e seus assessores – ou assessoras, todas lindas e eficientes – gostam de dizer que no ano passado a Soho pagou o segundo maior imposto de renda do setor, mas é difícil interpretar isso, à luz do relacionamento heterodoxo dos chineses com essa instituição.

Uma das grandes sacadas de Pan e sua mulher e sócia, Zhang Xin, tão ou mais chique e badalada que ele, foi investir em projetos arrojados, que lhes deram grande visibilidade. Isso num país em que meio século de comunismo havia produzido apenas caixotões horrendos, à la arquitetura soviética, e a nova abertura econômica significava os mesmos caixotões horrendos, só que com mais vidro, mais mármore e mais dourado. O bilhete de entrada do casal na lista internacional dos bem-sucedidos e bem-vistos foi um condomínio tão espetacular que até hoje causa alvoroço. A Comuna da Grande Muralha, assim chamada porque fica literalmente grudada no monumento nacional, numa área de floresta a uma hora de Pequim, consiste em doze casas, cada uma mais excepcional que a outra. Como não havia arquitetos locais sintonizados com o estilo contemporâneo, eles convocaram japoneses, sino-americanos e o que mais houvesse de talentos asiáticos para dar um clima oriental ao projeto. Ficou tudo tão espetacular, tão experimental e tão caro que o conjunto acabou virando um hotel muito, muito exclusivo.


Divulgação

SÍNDROME DA CHINA
O Teatro Nacional, assinado pelo francês Paul Andreu, está na lista dos grandiosos projetos de obras públicas em execução na China. A cúpula de titânio parece flutuar sobre um lago artificial. Chega-se a ela por um corredor transparente, debaixo d'água

A aposta modernista de Pan Shiyi e Zhang Xin antecipou, no âmbito privado, a louca caçada aos "melhores arquitetos do mundo" desencadeada na China em geral e em Pequim em particular, com a escolha da cidade como sede das Olimpíadas de 2008. O fenômeno, chamado de Síndrome da China pelo New York Times, produziu pelo menos uma dezena de projetos – a maioria ainda em execução, alguns já terminados –, cujo conjunto não tem similar no mundo. Não existe nome arquitetonicamente estrelado que não esteja hoje na China. O novo Aeroporto Internacional de Pequim é um estilizado dragão voador assinado pelo ing|ês Norman Foster; a Ópera de Guangzhou, às margens do Rio das Pérolas, tem a grife da premiadíssima iraquiana Zaha Hadid, evocando seixos fluviais longamente desgastados; o Grande Teatro Nacional, uma cúpula futurista no meio de um lago, é do francês Paul Andreu. Pela posição ímpar de destaque que ocuparão, duas grandes obras olímpicas vão deixar o mundo de queixo caído em 2008. Uma é o Centro Nacional de Esportes Aquáticos, conhecido como Watercube (Cubo Aquático), uma caixa translúcida recoberta por "almofadas" de um tipo de plástico inflável que criam um efeito de água flutuante (veja foto da maquete eletrônica na reportagem sobre Olimpíadas). Outra é o Estádio Nacional, dos suíços Pierre de Meuron e Jacques Herzog, envolto em um "bordado" de aço que já foi comparado a uma gaiola, um gradil da era Ming ou, como preferem os chineses, um ninho de andorinha – no caso, a referência é gastronômica.

Para muitos arquitetos, a China é o campo dos sonhos, o lugar onde podem realizar fantasias impossíveis. Eles chegam impressionados com os números do país que consome 54% de todo o cimento e 36% de todo o aço produzidos no mundo, com a enormidade da mão-de-obra – a certa altura, havia 7 000 operários trabalhando no estádio olímpico – e pelos baixos custos. Meuron calcula que o estádio chinês sairá a 10% do custo que teria na Europa. Em contrapartida, são engolidos pelo labirinto chinês: leis cambiantes, burocratas inacessíveis, cadeia de comando indecifrável, autoridades que dizem "sim", significando "pode ser", quem sabe" ou "depende...". O escritório de Meuron contratou um artista plástico local que tinha morado em Nova York, Ai Weiwei, para guiá-los nesse pântano. Uma das primeiras perguntas dos corretos suíços foi se o concurso para um grande projeto seguiria as regras de equanimidade das licitações internacionais. "Pela minha experiência na China, isso não tem a menor possibilidade de acontecer", respondeu Ai, um grandalhão barbudo e desbocado que coleciona troncos de árvores antigas em seu loft.

Ai Weiwei também trabalhou com Pan Shiyi, fornecendo projetos de paisagismo, esculturas vanguardistas e uma torrente de opiniões. Durante todo o furor olímpico, o empreiteiro ficou fora – hoje não quer nem falar no assunto, que considera superexplorado. Seu novo projeto é um conjunto monumental de prédios comerciais, ou espaços múltiplos, como prefere definir. Também tem um blog, no qual escreve sobre filosofia e negócios, segundo informa, dessa vez quase sem ironia. "Eu sou chato, como todos os empresários. É uma gente que tem de dar muita importância ao dinheiro", diz, numa autodefinição só possível àqueles que já têm dinheiro suficiente para fazê-la. Sobre seu país, tem uma visão muito mais radiosa: "Nos últimos anos, a China mostrou a sua enorme capacidade de produção, no campo da manufatura. No futuro, vai mostrar ao mundo o poder da mente, em lugar do poder da mão".

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