Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 05, 2006

VEJA Brechas na muralha


Brechas na muralha

Empresas brasileiras entenderam rapidamente
que a China oferece oportunidades fantásticas
e abriram fábricas no ex-país de Mao. O outro
aprendizado
tem sido mais lento e até doloroso:
ganhar
dinheiro no capitalismo chinês exige
mais
do que paciência


Lauro Jardim

 

Antonio Ribeiro
UMA TROPA DÓCIL
Trabalhadores montam um jato na fábrica chinesa da Embraer: treinada no Brasil, a mão-de-obra é barata, disciplinada e não discute ordens sob hipótese alguma

A brasileira Embraer tem fábricas em três países do mundo e escritórios em outros quatro. Em cada um desses lugares, a empresa teve de se adaptar a certas regras. É natural que seja assim. Nada, porém, se compara à experiência da Embraer na China. Há menos de três anos, a empresa instalou-se em Harbin, no nordeste do país, associando-se à estatal Avic II. Projetou uma fábrica para montar vinte jatos ERJ145 por ano. Parecia um tiro certeiro. Só que as coisas não andaram como o previsto. Desde então, a Embraer conseguiu apenas dezesseis encomendas. Pior: no fim de março, a Avic I, o outro braço do governo chinês para o setor, anunciou que começará a produzir um jato regional que, embora um pouco maior, competirá justamente com o ERJ145. "Em algum momento isso teria de acontecer", diz o diretor da fábrica, Roberto Rossi, enquanto caminha pelo monumental galpão onde está instalada a fábrica da Embraer.

A empresa brasileira não admite o golpe. Afinal, a operação da Embraer foi montada exclusivamente para vender jatos regionais à China. Não há, portanto, como brigar com o governo, que é o seu sócio e único cliente – todas as empresas aéreas chinesas têm, em maior ou menor escala, participação estatal. Não é somente por isso que a Embraer amorteceu a pancada: como tantas outras, a empresa faz uma aposta no futuro. Em quinze anos, a China será o segundo maior mercado do mundo para a aviação, na opinião de todos os especialistas. Até lá, a previsão é que as encomendas de jatos regionais sejam as maiores do planeta. É essa promessa de felicidade que justifica o risco desse mercado. Mesmo com obstáculos, ninguém quer desembarcar da festa antes que ela realmente comece.

 

Antonio Ribeiro
LONGE DO CÉU DE BRIGADEIRO
Rossi, diretor da joint venture da Embraer em Harbin, e Jiang Da, o número 2 da empresa: a previsão era montar vinte jatos por ano. Até agora, no entanto, foram apenas dezesseis encomendas em três anos. Ainda assim, ninguém quer sair de lá. O país deverá ser o maior mercado do mundo para jatos regionais nos próximos quinze anos

A Embraer não é a primeira ou a única empresa global a padecer desses transtornos. Está até em boa companhia. A poderosa General Motors é um exemplo. Em 2003, a GM surpreendeu-se ao ver uma van que apresentava numa feira de automóveis em Xangai ser integralmente copiada pela chinesa Chery. Eram iguais em tudo, menos no preço: enquanto a GM pedia 9.000 dólares por seu modelo, os chineses ofereciam o seu por 6.000 dólares. Uma das empresas donas da Chery era a estatal Xangai Auto, nada menos do que parceira da GM. Levado à Justiça, o caso não deu em nada: o juiz não viu provas conclusivas de roubo de propriedade intelectual. Estrategicamente, todas essas empresas lá permanecem em nome das oportunidades que um mercado efervescente oferece.

A China é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil. Está atrás apenas dos EUA e muito próxima da Argentina. É também o país que mais importa matérias-primas brasileiras como aço, minério de ferro ou soja. Está, portanto, assumindo um papel capital para a economia brasileira. Apesar disso, relativamente poucas empresas daqui têm escritórios ou fábricas no país mais populoso do mundo – não chega a cinqüenta esse número. Como competir com o bicho-papão que parece sugar para suas fronteiras os empregos dos operários do mundo inteiro? Não há uma regra. Exceto a de que não há como ficar parado vendo o monstro engordar. Esse é o caminho mais curto para morrer de inanição.

Paulo Vitale
PACIÊNCIA CHINESA
Viviane e Gabriela, sócias no Alameda, escolhido duas vezes como o melhor restaurante de cozinha internacional de Pequim: quatro anos para encontrar o endereço certo, mudança de regras e burocracia excessiva


Há quinze anos, quando o governo brasileiro espanou décadas de protecionismo e abriu a economia, baixando as tarifas de importação, os fracassomaníacos de plantão previram o caos. O que sucedeu foi o aumento de produtividade e o fortalecimento das empresas que estavam preparadas para os novos tempos. Agora, guardadas as proporções, a história se repete. A Gradiente, por exemplo, silenciosamente, partiu para a terceirização da manufatura. Já fabrica 60% de sua linha de produtos em solo chinês. Até poucos anos atrás, esse porcentual era irrisório. "Não dá para competir com o custo da mão-de-obra chinesa", diz Eugênio Staub, presidente da Gradiente e uma tradicional voz na defesa da empresa nacional. "Mas estamos dez anos à frente deles em design, tecnologia e gestão da marca." É nisso que Staub tem apostado. Montou um escritório com quase vinte funcionários num sofisticado arranha-céu em Shenzen, cidade ao sul do país, onde está instalado o maior parque fabril de eletroeletrônicos do mundo. Ali, a Gradiente garimpa novos fornecedores, faz encomendas – e mantém sua competitividade no mercado brasileiro. "Aqui aparecem e somem fornecedores numa velocidade impressionante", afirma Roberto Diniz, que chefia o posto avançado da Gradiente na China. "No início dos anos 90, quando vim a esta cidade pela primeira vez, eu só fechava negócio com a intermediação do pessoal de Hong Kong. Agora, trato direto com os chineses." A maioria dos empreendedores com quem Diniz fecha negócios é jovem, com menos de 40 anos de idade. "Em comum, têm a característica de tomar decisões arriscadas quando aceitam encomendas. Assumem que vão fazer e movem tudo o que for possível para cumprir o prometido."

Staub não é o único empresário com discurso nacionalista a se render aos encantos da oficina do mundo para continuar competindo. No setor têxtil também se encontram os mesmos paradoxos. O presidente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit) é Josué Gomes da Silva, que acumula ainda a presidência da Coteminas, a maior do Brasil no setor, e da Springs, a maior do mundo em cama e mesa. Com o chapéu de presidente da Coteminas e da Abit, Josué tem pedido ao governo proteção contra a invasão chinesa. Afinal, o Brasil está importando três vezes mais têxteis chineses em comparação com dois anos atrás. Algo como 50 milhões de dólares mensais. Já com o chapéu de presidente da Springs, que tem sede nos EUA, Josué está prestes a abrir uma megafábrica na China – não só para exportar, mas também para vender ao mercado local. Na verdade, a Springs já compra (e muito) de fornecedores chineses. Evidentemente, não há como culpá-lo. O capitalismo exige jogo de cintura, capacidade de adaptação. Do contrário, é melhor fechar as portas.

Da mesma forma, não se pode ficar parado diante do fantasma da clonagem ou pirataria – até porque na China, fatalmente, um dia ele nos assombrará de verdade. A Politec, uma das mais bem-sucedidas e inovadoras empresas de tecnologia da informação do Brasil, com 6.500 funcionários, subsidiária nos EUA e escritório no Japão, está prestes a encarar o fantasma. Fechou uma joint venture com uma companhia chinesa para vender soluções de internet banking para o Banco Agrícola da China, um dos quatro maiores do país. Há risco de que ele seja clonado por concorrentes locais? "Sim, e dou um prazo de três anos para que isso ocorra", afirma o presidente da Politec, Hélio Oliveira. "Já montei meu plano de negócios para lucrar nesse período." Enquanto isso, diz Oliveira, sua empresa deve fazer novos produtos que os chineses não saibam como copiar. Mais uma lição. Não adianta espernear contra o capitalismo peculiar e selvagem de lá: o jeito é buscar mais inovação.

 

Antonio Ribeiro
COM O PÉ DIREITO
Corrêa da Silva, um gaúcho de 36 anos que não fala uma palavra de mandarim: ele produz 35 milhões de pares de sapatos em Dongguan, para onde se mudou há doze anos em busca de custos menores

E se adaptar – regra de ouro para os grandes e os pequenos negócios. As paulistas Viviane Gonçalves e Gabriela Alves da Silva são sócias do restaurante Alameda, em Pequim, de comida contemporânea com toques brasileiros. O maior problema que enfrentaram para montar o negócio foi prosaico: encontrar um lugar adequado. Levaram quatro anos para achar um endereço simpático, numa rua sem saída do bairro de vida noturna mais intensa da capital. "É preciso aprender a ter muita paciência", diz Viviane, que comanda a cozinha, repetindo um mantra comum a todos os estrangeiros que vão fazer negócios na China. Segundo ela, o que mais atrapalha é a mudança das regras no meio do jogo. Leis que brotam do nada, exigências que surgem de repente. Superadas as dificuldades iniciais, hoje o restaurante tem 24 funcionários, dos quais vinte são chineses. Vive lotado. Foi escolhido como o melhor de comida internacional da cidade duas vezes seguidas, o que aumentou ainda mais o movimento. O alívio de ver o negócio fazendo sucesso agora vai passar por outro teste: Viviane e Gabriela já estão procurando um novo endereço. A ruazinha de lojas simpáticas virá abaixo para dar lugar ao estacionamento de um prédio comercial. É o preço a pagar por viver – e ganhar dinheiro – num país em ebulição permanente. "Em São Paulo, Nova York ou Londres já está tudo pronto", diz Viviane, que comandou um restaurante na capital inglesa. "Aqui está tudo em construção." Literalmente.

Uma das primeiras empresas a enxergar a China como uma oportunidade, e não uma ameaça, foi a Embraco, a maior fabricante de compressores para refrigeradores do Brasil. A empresa – hoje controlada pela americana Whirlpool, mas dirigida por brasileiros – aposta na China desde os anos 80. Inicialmente, exportando. Desde 1995 tem uma fábrica em Pequim. Deu certo. Em maio, foi inaugurada uma nova e moderna fábrica, dobrando a capacidade de produção para 4,5 milhões de compressores por ano. Todos serão vendidos na China. O roteiro da parceria foi o mais clássico possível. Primeiro, a Embraco associou-se a uma estatal. Mais especificamente, à Snowflake, velha fábrica de compressores controlada pela prefeitura de Pequim. Pelo acordo, a Embraco é a sócia majoritária e controla a gestão. Quem toca a fábrica é um executivo brasileiro, mas não há mais do que cinco brasileiros na operação, num total de 1.550 empregados. Na presidência do conselho está um dirigente do partido em Pequim. Assim como entre os seis gerentes três são do Partido Comunista Chinês. Como o capitalismo à chinesa é dependente do Estado até a medula, essas relações acabam facilitando a vida da empresa no dia-a-dia. Muitas vezes os comunistas relutam em aceitar inovações. Há alguns anos, os brasileiros propuseram a seus sócios dar participação nos lucros aos empregados. Algo como um salário a mais por ano. "Vocês estão loucos?", reagiu, com o vigor de um capitalista à moda antiga, o representante comunista no conselho da empresa. Depois, acabou cedendo.

Quando um empresário brasileiro pergunta ao advogado carioca Rodrigo Maciel, especialista em China, o que fazer para se proteger da invasão chinesa, ele propõe: "Por que o senhor não abre uma unidade de sua empresa lá?". Maciel aconselha também que, antes de fechar qualquer negócio com os chineses, o brasileiro patenteie seu produto na China. Não é garantia de tranqüilidade total, mas uma tentativa de proteção a mais. O paulista Marcelo Godke, advogado e também especialista em China, sugere aos clientes que escolham qualquer cidade chinesa para montar seu negócio, desde que joguem para Hong Kong o foro para dirimir quaisquer questões judiciais. É também uma garantia extra – em Hong Kong, o Judiciário funciona, ao contrário do que ocorre na China continental. "Embora nada assegure que a execução da sentença será mesmo cumprida, dependendo da província em que está instalada a fábrica", afirma Godke. Ou seja, se não for do interesse do governo local, esqueça, que a Justiça tardará e falhará.

Se várias companhias brasileiras ergueram uma unidade avançada na China, outras partiram para uma solução mais radical: mudaram-se para lá. Alto, muito magro e dono de pronunciado sotaque gaúcho, Ricardo Corrêa da Silva mora há doze anos no sul da China. Não fala mandarim. Ainda assim, produz 35 milhões de calçados femininos por ano em Dongguan, quase todos exportados para os EUA – cerca de 1% de tudo o que a China, o maior fabricante de calçados do mundo, vende ao exterior. É uma amostra do que dá para fazer ali, mesmo sem dominar a língua, tendo apenas o know-how. Aos 36 anos, ele comanda a Paramont, fundada por seu pai em Campo Bom, no Rio Grande do Sul, décadas atrás, e transferida para a China nos anos 90. "Era outro país, sem tradição no setor, mas meu pai resolveu apostar", diz o empresário. "Os chineses aprendem rápido." O que empurrou a Paramont para fora do Brasil foram os custos. A indústria calçadista precisa de mão-de-obra intensiva. Por isso, faz toda a diferença estar num lugar em que os operários ganham o equivalente a 60 dólares por mês, trabalhando sete dias por semana, doze horas por dia. No Brasil, o mesmo funcionário recebe em média quase sete vezes mais, trabalhando de segunda a sexta-feira. "Nosso setor é nômade", explica Corrêa da Silva. "Está sempre em busca de mão-de-obra barata." Assim, o Brasil exportou milhares de empregos, milhões em impostos e know-how acumulado anos a fio. Numa palavra, perdeu competitividade. Hoje, a China é o maior fabricante de calçados do planeta. E Dongguan e arredores são o centro dessa indústria. Produzem 9 bilhões de pares de sapatos por ano, doze vezes mais que o Brasil.

Dongguan é outro daqueles milagres chineses. Há pouco mais de duas décadas, sua população não chegava a 30.000 pessoas. Hoje, chega a 7 milhões. Na cidade, erguem-se arranha-céus de aço escovado e vidro como, no Brasil, só São Paulo possui. E existem brasileiros. Muitos brasileiros. "Não param de chegar", diz o diretor da Paramont Ari Filipini, há oito anos na cidade. Estima-se que lá existam perto de 1.000 brasileiros, praticamente a totalidade na indústria de calçados. Na Paramont estão 150, todos técnicos. A empresa ainda mantém um naco de operação no Brasil. Algo como 5% de sua produção. "Quando viemos para cá, a idéia era ter a China como uma opção estratégica de negócios", afirma Corrêa da Silva. "Agora, o Brasil virou nossa opção estratégica para um problema inesperado na China." Inverteram-se, pois, as prioridades e as opções. É um resumo do grande desafio a ser enfrentado pelo Brasil.

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