Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 05, 2006

VEJA Planeta China-EUA


Planeta China-EUA

A maior potência econômica do planeta,
os Estados Unidos, precisa de 2 bilhões de
dólares por dia para financiar sua dívida.
Boa parte desse dinheiro vem da China.
Não são apenas os EUA que dependem da
economia chinesa. O mundo inteiro está
sendo açoitado pelas ondas de choque
que partem de Pequim


Lauro Jardim

 

Getty Images
UMA EXPLOSÃO FUTURISTA
Avenida de Shenzen, no sul do país: em 25 anos, a população cresceu 2 700% e a cidade abrigou as fábricas ultramodernas que espalham pelo mundo produtos como iPods e PlayStations

Em 1995, apenas 5% dos produtos que a gigante Wal-Mart vendia nos Estados Unidos saíam de suas fábricas. Hoje, um de cada dois produtos vendidos pela Wal-Mart vem da China. O significado disso é muito maior do que a indicação de que China e Estados Unidos mantêm intenso comércio bilateral e uma aliança umbilical nas finanças – quase todo o dinheiro que os americanos gastam comprando artigos chineses volta ao país quando o governo chinês devolve a gentileza adquirindo títulos do Tesouro americano. O grande significado de as prateleiras do Wal-Mart – e também as da Target, da Best Buy e da Home Depot, as outras cadeias nacionais de varejo dos Estados Unidos – estarem cheias de produtos chineses vem do fato de que isso ajuda a manter a inflação americana perto do zero. Segundo o economista de Harvard Ken Rogoff, metade do aumento de produtividade da economia americana – a mais espetacular do mundo – se deve ao fato de os produtos feitos na China chegarem ao consumidor a um preço baixo e ainda assim darem aos comerciantes uma margem de lucro altíssima, inatingível caso comprassem de outro país produtor ou dos próprios fornecedores americanos. Um caso exemplar: o Wal-Mart revende um par de botas made in China por 50 dólares, com uma margem de lucro de cerca de 7% – ou 3,50 dólares. O fabricante chinês vende o par por 15,30 dólares e obtém um lucro, antes dos impostos, de apenas 65 centavos de dólar. Conclusão de Rogoff: "A imensa porção de riqueza gerada por essa operação fica nos Estados Unidos. Por isso, nada menos do que 50% do aumento de produtividade da economia americana se deve ao suor dos trabalhadores chineses".

Um império como o americano precisou de um século para crescer e se firmar. Quem desembarca hoje na China assiste também à formação de um império, mas que cresce em velocidade vertiginosa. Parece um daqueles filmes de câmera rápida que mostram em segundos como a crisálida se transforma em borboleta. Tome-se por exemplo a cidade de Shenzen, no sul da China. Há 25 anos, tinha 300.000 habitantes. Produzia bananas e pobreza. Hoje, são 8 milhões de pessoas trabalhando no local de maior concentração de indústrias de eletroeletrônicos do planeta. De lá saem os iPods que a Apple desenha para o mundo inteiro usar. Ou todos os PlayStation que a Sony põe no mercado para a garotada. Na cidade se erguem dezenas de torres de escritórios de cinqüenta andares, numa sucessão tal que nem a soma dos arranha-céus das grandes capitais brasileiras as bateria. Nada no Brasil se aproxima do espetáculo que se desenrola aos olhos dos visitantes. Nada. São Paulo, nosso exemplar máximo de poderio econômico, parece um museu do capitalismo do século passado. O mundo também nunca viu algo assim, pelo menos na escala. Países se modernizaram, como Cingapura e Coréia do Sul. Outros mudaram seu papel no mundo, como é o caso do vizinho Japão. Mas nenhum fez o que a China está fazendo.

 

Antonio Ribeiro
PODER E SOBERANIA
Zhu Guangyao, do Ministério das Finanças: discurso duro contra pressões americanas

Em um quarto de século, o país colocou-se no centro do planeta. Para o mundo começar a andar mais devagar, basta a locomotiva chinesa dar sinais de fadiga – só os Estados Unidos têm poder semelhante. Para que haja uma desarrumação na economia mundial, é só dar uma boa mexida em sua moeda – novamente, apenas os EUA têm essa capacidade. Na hipótese de a China crescer mais do que o previsto, os preços do petróleo, do minério de ferro e de outras matérias-primas dispararão. Aumentará o risco de escassez de energia e se multiplicarão os transtornos ambientais. E se o trem mantiver a velocidade atual, num cenário sem soluços, portanto, a influência da China seguirá ascendente: pelas estimativas da Organização Mundial do Comércio (OMC), o país será o maior exportador do mundo em 2010. Atualmente, está atrás da Alemanha e dos Estados Unidos. Para isso, precisa manter o ritmo de crescimento dos últimos anos no comércio exterior, de 25% em média. Indo direto ao ponto, a China hoje é, ao lado dos EUA, o grande motor da economia mundial – tudo passa por ela.

A interdependência entre os Estados Unidos e a China é total. Os americanos dependem dos chineses para produzir barato e para financiar seus gastos. A China precisa dos EUA vigorosos, despejando investimentos bilionários no país e importando feito loucos os produtos baratos que ela fabrica. EUA e China vivem em um processo simbiótico que permite e até obriga cada um deles a ir empurrando com a barriga gigantescas distorções. As famílias americanas economizaram 600 bilhões de dólares nos últimos dez anos em conseqüência da importação de produtos chineses baratos – como se vê, os dois lados ganham. Além disso, os chineses bancam 6 em cada 100 dólares de títulos da dívida americana que estão no mercado – e 4,2 trilhões de dólares estão no mercado.

 

Guang Niu/Getty Images
TRABALHO, TRABALHO, TRABALHO
Fábrica de móveis (acima) e funcionários do Wal-Mart, em Shenzen: a maior rede mundial de varejo tem na China 80% de seus fornecedores. Os empregos que desaparecem no resto do planeta ressurgem nas cidades chinesas
Greg Girard

Se esse ciclo se romper, não só os dois países como também o resto do mundo passarão por boa temporada de problemas. E o mais incômodo deles será a recessão. A importância da China é também capital para as outras duas potências econômicas, Japão e Alemanha, segunda e terceira economias do mundo (a China é a quarta). A fabulosa máquina exportadora alemã tem na China o seu maior comprador. Quanto ao Japão, basta dizer que boa parte da recuperação de sua economia, estagnada por mais de uma década, se deve ao fenômeno chinês. E, finalmente, os produtos chineses de baixo preço são um dos fatores que explicam a inflação controlada de boa parte dos países do Ocidente – desenvolvidos, subdesenvolvidos e emergentes.

Desde o início do ano, a China é dona do maior volume de reservas em moeda estrangeira do planeta. São cerca de 1 trilhão de dólares, um valor que cresce em velocidade supersônica – há dez anos essas reservas somavam 75 bilhões de dólares (as do Brasil não passam de 63 bilhões de dólares). O gigantesco superávit em suas contas externas é alimentado também por doses industriais de investimentos estrangeiros. Desse quase 1 trilhão de dólares, 60% estão aplicados em dólares e títulos do governo dos Estados Unidos. O acúmulo descomunal de títulos do Tesouro americano (cerca de 260 bilhões de dólares) em cofres chineses tem como efeito a possibilidade de os americanos reduzirem suas taxas de juro. Os mesmos juros baixos que, por sua vez, são parcialmente responsáveis pela bolha do mercado imobiliário dos EUA. Ou, como disse recentemente o economista americano Paul Krugman, com sarcasmo: "Tornamo-nos uma nação na qual as pessoas ganham a vida vendendo casas e pagando por elas com dinheiro da China".

Por todos os lados que se olhe, a influência chinesa tende a ganhar corpo. O tamanho de seu mercado doméstico, algo como 300 milhões de consumidores, e a sua capacidade assustadora de produzir barato passarão em breve a ser definidores de padrões de bens de consumo do mundo – invertendo um papel histórico do país. O setor eletroeletrônico será o primeiro a sentir essa nova pegada chinesa. Até agora são as empresas hegemônicas do setor que ditam as regras. Sony, Philips e Panasonic, por exemplo, fixaram padrões de DVDs usados mundo afora. No novo mundo em que estamos entrando já se pode imaginar um padrão criado na China para um novo produto de consumo de larga escala ser lançado para os seus 300 milhões de consumidores e depois ganhar o planeta – sobretudo pelo preço mais baixo, que, no fim das contas, é determinante.

O fenômeno China não pode ser comparado aos também impressionantes saltos do Japão nos anos 70 e 80 nem aos dos Tigres Asiáticos nos 80 e 90. O Japão passou de produtor de baixo custo a produtor de alto custo numa geração apenas. "A China tem vastidão territorial com enorme estoque de mão-de-obra, que lhe permitirá ascender na escala tecnológica sem sacrificar ainda por muitos anos sua atual vantagem em termos de custos", afirma o americano Oded Shenkar, um estudioso do país há mais de três décadas, no livro O Século da China. Pela extensão de seu território, pelo tamanho de sua população e pela sua capacidade de alterar a geopolítica do planeta, o milagre chinês tem muitas semelhanças com o surgimento do império americano, entre fins do século XIX e início do XX. Só que em ritmo mais acelerado.

O crescimento arrasa-quarteirão da China é um dos filhos bem-sucedidos da globalização. Sem o aumento da integração econômica entre os países ocorrida a partir da década de 80, esqueça o fenômeno – ele não teria se manifestado. A precondição fundamental foi, e continua sendo, o intenso e pulverizado fluxo de investimentos de bens e capitais. Paralelamente, o crescimento chinês ocorre num momento em que a OMC passou a existir e ganhar importância, forçando a abertura de mercados. Tudo isso conjugado com uma redução brutal dos gastos de transportes: os volumes crescentes de bens exportados jogam no chão os custos de logística. Quem estava protegido pela proximidade de seu mercado ficou a ver navios. Isso vale, por exemplo, para o México. Com os acordos do Nafta, o país imaginou ter o mercado americano cativo por causa da fronteira. Não está mais. Com isso, vira pó mais uma verdade que norteou durante décadas o mundo dos negócios.

Não apenas o baixo custo da mão-de-obra tem feito da China um país vencedor. Tomem-se os setores têxteis ou o de calçados, em que a hegemonia da nação cresce sem cessar. Há países na própria Ásia oferecendo braços mais em conta – mas não tão disciplinados e competentes. Além disso, a economia de escala, a produtividade e a logística tornam os chineses imbatíveis. Existem cadeias que agilizam a produção, todas elas integradas. Assim, a China vai deixando baixas em todos os continentes, indistintamente. No setor têxtil, por exemplo, todos têm perdido. Ricos e pobres. A Associação Americana de Produtores Têxteis estima que nos últimos três anos uma fábrica tenha sido fechada por dia nos Estados Unidos. A África Subsaariana viu suas exportações de roupas de cama cair de 1,1 milhão de peças para 350.000 entre 2001 e 2003. Se há um lugar que poderia disputar com a China no item custo de mão-de-obra seria a África. Mas falta aos países africanos algumas condições essenciais que os chineses oferecem: educação dos trabalhadores, infra-estrutura, logística e um nível mínimo de estabilidade política. Isso sem falar na corrupção endêmica que grassa no continente. Os vizinhos asiáticos sentem arrepios da mesma intensidade. Em 1992, Cingapura detinha 22% da produção de eletrônicos. Naquele ano, a China ficava com 9,5% desse total. No fim da década, os sinais se invertiam: a China alcançava o porcentual do vizinho, que se contentava com 13% do mercado.

Os Estados Unidos têm se debatido em descobrir maneiras de diminuir o seu monumental déficit no comércio bilateral com a China – hoje na marca dos 200 bilhões de dólares por ano. A palavra de ordem da maior economia do mundo tem sido: "China, valorize a sua moeda já". Assim, os produtos chineses ficariam mais caros (e supostamente menos competitivos). Não há um dia nestes últimos meses em que alguém do governo Bush ou algum congressista republicano ou democrata não bata nessa tecla. Acusam o governo chinês de manter a moeda artificialmente desvalorizada. A China empurra uma eventual mudança no câmbio com a barriga. Algumas vezes, responde mais duramente aos EUA. Outras, acena com mudanças. Recentemente, num relatório que distribuiu aos 149 integrantes da OMC, admitiu flexibilizar o câmbio, mas "a longo prazo". Em entrevista a VEJA, o diretor de assuntos internacionais do Ministério das Finanças da China, Zhu Guangyao, inicialmente sorriu quando lhe foi perguntado até quando o país suportaria a pressão dos Estados Unidos para valorizar o yuan. "Em julho de 2005, já valorizamos nossa moeda", disse. Fez uma pausa, tomou um gole de chá e emendou uma afirmação mais dura. "Não vamos tomar uma decisão dessas por causa dos EUA." Ainda que seja uma retórica estudada, a declaração não pode deixar de ser lida como um sinal de força. "Temos de pensar, antes de tudo, em nosso crescimento. O governo da China faz o que é preciso para a população chinesa, e não o que os outros querem que ele faça."

Importar barato da China cria dependência. A escalada da Wal-Mart nos últimos dez anos para o posto de maior empresa do mundo está umbilicalmente ligada ao milagre chinês. Em 2003, o maior varejista do planeta importou mais produtos chineses que a França ou o Reino Unido. Das 6.000 fábricas pelo mundo que fornecem produtos à Wal-Mart, 80% estão na China. Isso mata empregos. Aos Estados Unidos, e por extensão aos outros países ricos, restaria gerar profissionais capazes de produzir "bens com base em idéias que possam ser vendidos em todo o planeta", como sugere Thomas Friedman em seu livro O Mundo É Plano, lançado no ano passado. Para ele, "a quantidade de bons empregos fabris tem um limite, mas o número de bons empregos gerados por idéias não". Perfeito, mas com o tempo a China também será capaz de ter gente gerando boas idéias. Essa é mais uma questão que atormenta o resto do mundo.

Na outra ponta, o crescimento do mercado interno chinês beneficia os exportadores americanos. Isso quer dizer que o lobby chinês nos EUA é exercido ainda por gigantes como a Boeing – de olho num mercado que os especialistas apontam como o maior do mundo para a aviação civil nos próximos vinte anos. Como se vê, está tudo imbricado. Como conseqüência, o lobby chinês nos Estados Unidos tende mais a ser feito pelos grandes e poderosos conglomerados e a pressão protecionista, a ser comandada pelas pequenas e médias empresas americanas. Das 500 maiores companhias americanas, 450 instalaram-se na China. Isso diz muita coisa. Hoje, todas as decisões de investimento das empresas globais passam pela China. Um total de 72 bilhões de dólares foi investido lá no ano passado pelas companhias estrangeiras – a maior enxurrada de dólares do planeta. Nenhuma multinacional bota dinheiro no Brasil, por exemplo, sem levar em conta antes o mercado chinês.

O corolário do avanço da China na economia é seu natural maior poder de fogo no jogo geopolítico. Inicialmente, na Ásia. Ali, o país já tomou o lugar dos Estados Unidos como o maior mercado externo da Coréia do Sul e de Cingapura. É também o maior exportador para o Japão – lançando ao espaço uma supremacia americana que vinha desde o pós-guerra. E prevê-se que em poucos anos ultrapasse os EUA como o maior parceiro comercial da Índia. A China tem avançado ainda no comércio com a África. Aproveita o flanco aberto por companhias americanas e européias de bens de consumo que vêm se desinteressando de um continente com baixa capacidade de consumo.

Num outro campo, é provável que no futuro próximo a China (dependente de petróleo para sustentar seu crescimento) passe a lutar pelo combustível como os Estados Unidos lutam. Hoje, o país importa 50% de sua demanda de petróleo. Prevê-se que esse porcentual suba para 65% nos próximos cinco anos. Quase 20% do que a China compra de petróleo vem do complicado Irã. É nesse país que a empresa de energia Sinopec está fazendo um de seus maiores investimentos no exterior para o desenvolvimento de um campo de gás natural. Um vínculo e tanto. Não bastasse, a China compra 60% do petróleo produzido pelo Sudão, endossando um regime genocida, responsável pelo assassinato de 300.000 muçulmanos. Nem se imagina que a China vá pensar em sanções comerciais por questões assim – seria ingenuidade pedir isso a um regime fechado, comandado por um partido único.

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