Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 05, 2006

VEJA Império instantâneo


Império instantâneo

Se continuar a crescer no mesmo e alucinante
ritmo atual, a China vai construir em poucas
décadas um império global que os americanos precisaram de um século para erguer. E não
há sinais de que esse ritmo esteja diminuindo...


Lauro Jardim

 

Paulo Vitale
NO TOPO DO MUNDO
Estátua do gigante chinês Yao Ming, um dos maiores jogadores de basquete do planeta, num museu de cera em Xangai: ele parou de crescer. A China não pára há 27 anos consecutivos

O grandalhão da foto acima é um dos jogadores de basquete mais altos do mundo. Como todo bom produto made in China, Yao Ming foi exportado com sucesso para os Estados Unidos. Pivô do Houston Rockets, é há quatro anos uma das maiores atrações da NBA. Ming e a China cresceram como ninguém no planeta nos últimos 26 anos. Nascido em 1980, o jogador é um colosso de 2,26 metros. Evidentemente, ele já parou de crescer. A China não. A China não pára: é, de longe, o país que mais cresceu desde 1980. Uma média de 9,6% por ano neste quarto de século. Significa dizer, por exemplo, que nos últimos três anos acrescentou quase um Brasil inteiro ao seu PIB. No primeiro semestre de 2006, sua economia manteve-se como a mais vigorosa entre todas. Cresceu mais 10,9%.

Cresceu também em qualidade. Esqueça a China como o país apenas das baratíssimas camisetas de 5 centavos de dólar e das quinquilharias. Em 2005, o país fabricou (ou montou) 400 bilhões de dólares em produtos de alta tecnologia. Por exemplo, sete em cada dez aparelhos de DVD vendidos no mundo – das marcas Sony, Panasonic, Philips e outras – vêm de lá. Preste atenção no seguinte fenômeno: o país ainda será por décadas o das camisetas a preço de banana, mas será cada vez mais um superfabricante de produtos de alta tecnologia e um criador de marcas mundiais – simultaneamente. Para segurar a base da pirâmide, não falta mão-de-obra barata chegando todos os dias do empobrecido campo para abastecer o mercado de trabalho. Somente a região de Xangai recebe diariamente 28.000 novos trabalhadores ávidos por encarar jornadas de seis a sete dias por semana, doze horas por dia, recebendo algo entre 100 e 200 dólares por mês. Para sustentar as partes do meio e o topo dessa pirâmide, é formado por ano cerca de meio milhão de cientistas e engenheiros. Ao ritmo de hoje, o Brasil levaria cerca de 45 anos para formar tanta gente nessas áreas.

 

Fotos Antonio Ribeiro

EXTRAVAGÂNCIAS
Sede da Heilan, a maior fábrica de ternos do mundo, a 250 quilômetros de Xangai: prédios monumentais que misturam colunas e estátuas da Roma antiga, arquitetura neoclássica e imponentes edifícios da Itália fascista dos anos 30 – um samba do arquiteto doido. Abaixo, o interior de uma dessas construções: 70% dos operários moram em prédios-dormitório localizados dentro da empresa

O país é uma máquina de produzir como nunca se viu outra igual. Uma máquina que mistura características do comunismo e do capitalismo. Mistura, portanto, baixos salários, partido único, ausência de direitos civis e de reivindicação, com a busca pela produtividade, meritocracia, capital abundante, atração de estrangeiros e investimento em capital humano. É uma máquina bafejada pelas circunstâncias de ter a seu dispor o maior mercado interno do mundo e o maior mercado externo do mundo – os Estados Unidos. Uma máquina de produzir riquezas que estabeleceu com os EUA um pacto de morte, em que um precisa que o outro esteja saudável para que ele próprio permaneça crescendo.

O espetáculo do crescimento chinês surge de empresas como a BYD. Provavelmente, ninguém no Brasil ouviu falar dela. É a segunda maior fabricante mundial de bateria de celulares. Fornece para Motorola, Nokia e todas as que importam no setor. Um em cada quatro aparelhos em funcionamento no mundo é equipado com uma bateria da BYD. Produz também dezenas de produtos de alta tecnologia, como telas de LCD. Tudo isso em apenas onze anos de vida. Seu segredo? Antes, essas baterias eram fabricadas em unidades superautomatizadas no Japão. A BYD tirou os robôs de cena, botou um exército de braços chineses no lugar e ganhou a parada. Evidentemente, mantendo a qualidade – sem isso, nada feito. A BYD tem 60.000 empregados.

Seu fundador e presidente, Wang Chuan-fu, tem apenas 40 anos – o que pode ser considerado uma idade-padrão dos grandes empreendedores chineses de hoje. Gente jovem, portanto. Pois bem, como se fosse pouco, Wang há três anos partiu para a produção de carros. Quando se lançou à aventura de competir com a GM, Ford e Honda, Wang bancou uma afirmação ousada, tipicamente capitalista: "Em dez anos, seremos a maior fábrica de automóveis da China". Neste ano devem sair 200.000 veículos de sua fábrica na cidade de Xian, no noroeste do país. Ainda é pouco. A BYD (sigla que não quer dizer nada, foi escolhida apenas pela sonoridade) exporta apenas para o Oriente Médio e a Colômbia. Falta muito para alcançar sua meta. Mas esse não é o ponto. O empreendedorismo floresce na China. Ainda que de um modo bem próprio. Ex-pesquisador de uma estatal, Wang diz que a escassez de verbas para pesquisa o fez querer abrir uma empresa, onze anos atrás. Quando se mete num empreendimento assim, ainda que assuma riscos, alguém como Wang obtém com certa facilidade o fundamental para botar a bola em jogo – crédito fácil nos bancos oficiais. O financiamento é farto. Para o bem e para o mal, as garantias pedidas pelos bancos para empréstimos são ralas em comparação com o que ocorre no Ocidente.

A empresa tem algumas características peculiares ao capitalismo chinês. A clonagem é uma delas. A logomarca da montadora BYD lembra muito a da BMW. O F3, modelo lançado há menos de um ano, é parecidíssimo com o Corolla, da Toyota (a parte dianteira), e com o Civic, da Honda (a parte traseira). Não deve ser por acaso. Desenvolver um automóvel pode custar de 1 bilhão a 2 bilhões de dólares para a Volkswagen, Toyota ou Honda. Para a BYD, passa longe disso.

 

MIGRAÇÃO DESCOMUNAL
Zhang Nabing, de 17 anos, desembarca na estação ferroviária de Pequim, junto com seu pai: mais um migrante vindo do interior chega à capital para trabalhar na construção civil. Prevê-se que 200 milhões de pessoas farão o mesmo nos próximos dez anos

A indústria automobilística chinesa está em processo de consolidação. As taxas de crescimento do mercado doméstico são as mais altas do mundo. Em outubro passado, pela primeira vez, o país exportou mais carros que importou. É verdade que suas vendas externas ainda são destinadas a países pobres. Mas as pontes para um novo estágio já estão sendo pavimentadas. No ano que vem, a Chery, a maior montadora chinesa, inicia a venda de seus modelos nos EUA e no Brasil. Não são poucos os analistas que prevêem que a entrada vigorosa da China no setor deverá bagunçar ainda mais a cabeça de Detroit, a capital da indústria automobilística dos EUA. No futuro, talvez Detroit tenha saudade dos tempos em que a Toyota e a Honda eram os fantasmas que lhe tiravam o sono. Nos Estados Unidos, uma hora de trabalho de um operário custa 37 dólares. Na indústria automobilística chinesa sai por menos de 2 dólares (no Brasil é o triplo disso).

Os dirigentes chineses pressionam também para que qualquer joint venture com uma grande empresa estrangeira traga no seu bojo transferência de tecnologia. A General Motors bateu a Ford numa disputa pela instalação de uma fábrica em Xangai porque aceitou erguer um centro de pesquisa e desenvolvimento ali, transferindo tecnologia de última geração para a região. São 270.000 empresas estrangeiras brigando por espaço na China. Alcançam algo que o Brasil nunca pensou em conseguir. As companhias automobilísticas chinesas possuem parcerias com empresas estrangeiras concorrentes. Conseguem, portanto, acesso aos segredos de seus dois sócios – em nenhum outro lugar se vêem contratos assim.

Talvez a característica mais forte do "socialismo de mercado chinês" seja a mistura de papéis entre o Partido Comunista e a iniciativa privada. Praticamente todas as empresas têm uma participação estatal, ainda que pequena. Seja do governo central, do da província, seja do governo da cidade. O peso do setor público na economia ainda é gigantesco. Estima-se algo entre 40% e 50% do PIB. O controle do empreendimento pode ser privado, mas a mão forte do Estado está lá, onipresente. Os burocratas do PCCh metem-se a ser empresários. É comum que se aproveitem de facilidades dos cargos para passar de burocratas a capitães de indústria em transformações pouco transparentes. A Heilan, surgida dezoito anos atrás, é um desses fenômenos de "co-habitação" entre a iniciativa privada e o partido. É a maior fabricante de ternos do mundo. Neste ano deve produzir 10 milhões de peças, a maioria para exportação. (É quase o dobro do que o Brasil fabrica em igual período.) Algo como 27.300 ternos por dia, numa conta que considera funcionamento a pleno vapor nos moldes chineses. Ou seja, sete dias por semana. Quem a comanda é Zhoujianping, fundador da empresa e também alto dirigente do partido. Ele é deputado com cadeira no Congresso Nacional do Povo e integra a administração da província de Jiangsu, onde a fábrica está instalada. Zhoujianping, 46 anos, é o sócio majoritário, mas o governo local tem uma parte – e há outra pulverizada na Bolsa de Valores de Hong Kong. Yan Haifeng, assessor da presidência da Heilan, vê esse atrelamento como normal – e até desejável. "Ser do partido ajuda a empresa, claro", admite ele. "Mas ajuda o país também: se a empresa tem lucros, reverte para o país através de impostos e empregos."

A Heilan é um filho legítimo de outra particularidade chinesa – a monumentalidade e o delírio arquitetônico. Sua sede na cidade de Jiangying é composta de um hotel cinco-estrelas e seis prédios gigantescos, cinco deles para a manufatura. Não são prédios quaisquer. Misturam a arquitetura dos edifícios da Itália fascista dos anos 30 do século passado com colunas, estátuas e mármores da Roma antiga – tudo isso em prédios, repita-se, de dimensões monumentais. Um samba do arquiteto doido. Nos limites da Heilan, há também vários prédios de dormitórios, onde moram 70% dos 15.000 funcionários. É o que há de mais comum nas fábricas chinesas: como quase todos os operários são migrantes, eles moram nesses quartos, de graça. Podem ser quartos para abrigar de seis a dez operários, sempre muito jovens (entre 18 e 24 anos), com salários entre 150 e 200 dólares mensais. É possível interromper o trabalho dos operários para algumas perguntas? "Sim, só não é permitido perguntar sobre política", ressalva o porta-voz que acompanha a equipe de VEJA. A história de cada um deles é entediantemente semelhante: todos vieram do campo, de famílias de agricultores, e mensalmente enviam entre 30% e 50% do salário para ajudar os pais. Em outras fábricas pelo país, mesmo nas que produzem para multinacionais de ponta, encontram-se operários que recebem 50 dólares por mês e enfrentam um batente de quinze horas diárias. Uma delas, denunciada em junho, fabricava iPods para a Apple e chips para a Intel.

O dedo do Estado em todo o mundo de negócios remete a outra característica do país – o guanxi, um misto de poder de influência, teia de relações e interesses, ajuda aos amigos. É algo entranhado na cultura local como cuspir na rua, tomar chá sem açúcar ou comer com pauzinhos. Sem exceção, todos os executivos e empresários que conversaram com VEJA para esta reportagem citaram espontaneamente o guanxi como condição fundamental para as coisas fluírem. Na prática, o guanxi num Estado com um partido onipresente significa ter relações com algum filiado ou com algum burocrata dos governos (local ou central) para conseguir facilidades. Isso passa pela troca de favores. E por corrupção, também entranhada no país até por causa dessa característica: onde há burocracia forte e uma montanha de burocratas maiores e menores, a tendência é a venda de facilidades. Para conseguir empréstimos nos bancos chineses (estatais, claro), o guanxi é fundamental – seja para um financiamento maior, seja para dar em troca menos garantias. Para conseguir um terreno para construir um arranha-céu, por exemplo – e, portanto, desalojar quem mora no tal terreno –, essa teia de conexões é crucial. É também o motivo de muitas companhias privadas estrangeiras procurarem sócios locais: para ter guanxi e facilitar sua atuação num país em que as regras não estão todas escritas e o Judiciário não funciona como deveria.

Em alguns setores em que o Estado ainda paira quase absoluto, é natural que o guanxi seja mais necessário. A aviação comercial, por exemplo, é extremamente regulada. O governo decide e aprova não só novas rotas, mas até a compra de novos aviões pelas empresas. "Aqui tudo é muito controlado", afirma Zhang Pei, 44 anos, um dos fundadores e o atual vice-presidente da Shenzhen Airlines, a quinta maior companhia aérea do país. Ele acha que, assim como já ocorreu em outros setores, a tendência na aviação chinesa é a desregulamentação. A companhia é controlada por duas empresas privadas chinesas, mas tem 25% de seu capital nas mãos da estatal Air China. Outros 10% pertencem à prefeitura de Shenzen. Pei tem planos ambiciosos. Diz que, nos próximos três anos, dos 33 aviões atuais a Shenzhen Airlines passará a setenta. E que a hoje companhia regional passará a voar para as principais cidades asiáticas. Haja guanxi para conseguir tudo isso, observa o repórter de VEJA. Pei sorri, concordando. Ex-funcionário de uma estatal, ele acha que nas empresas privadas as coisas funcionam melhor. "O lucro é bom. Se formos comparar a uma partida de futebol, antes o governo fazia o papel do juiz, dos 22 jogadores e da torcida. Agora, ficou só com o papel do juiz. Está melhor assim", diz.

Não é verdade que o governo atue somente como juiz. Mas é inegável que o grau de liberdade para fazer negócios é crescente. Os milhões de companhias estatais dos tempos pré-abertura caíram para 170.000 há dois anos. E a meta declarada do governo é ficar com 189 conglomerados estatais, atuando em diversos setores. Mas sem monopólios e com metas de eficiência. Pelo menos é a promessa do governo. Para uma empresa 100% privada, é menos problemático expandir-se hoje do que em outros tempos. A Huawei, a maior companhia de produtos de telecomunicação do mundo, que o diga. Fundada em 1988, no começo dos anos 90 sofreu pela falta do braço estatal. Obstáculos não faltavam. Não era permitido enviar funcionários ao exterior para especialização. Também havia barreiras para trazer operários de outras localidades para trabalhar ali. Era difícil tomar empréstimos nos bancos oficiais. "Só as empresas 100% estatais ou com alguma participação do Estado tinham acesso fácil ao crédito", admite o porta-voz da Huawei, Fu Jun. "O governo decidia para quem eles emprestariam." Esses problemas não existem mais. A Huawei, que faturou 8,2 bilhões de dólares no ano passado, mistura a grandiosidade das empresas chinesas com fortes características ocidentais. Do lado chinês, a monumentalidade. Tem 40.000 funcionários, sua sede estende-se por 1,3 quilômetro quadrado (o equivalente ao Parque do Ibirapuera, em São Paulo) e vende seus produtos para cerca de 100 países. À semelhança das empresas de ponta dos países do Primeiro Mundo, possui apreço por pesquisa e desenvolvimento de produtos ainda incomuns na China: é dona de 11.000 patentes, um recorde entre as companhias locais. Muito menos que a IBM no período entre 1990 e 2005, que tem patenteadas 35.000 invenções. Mas já bate de longe a maior empresa brasileira: a Petrobras fez 1.119 pedidos de patentes em seus 53 anos de existência.

A Huawei é uma representante genuína de uma nova China. Vários gigantes chineses já buscam construir marcas mundiais. Marcas que o consumidor do Brasil, da Zâmbia ou da Inglaterra reconheça como de qualidade. Querem criar suas próprias Nike, Toyota, Samsung ou L'Oréal – para ficar somente em quatro marcas mundiais criadas em quatro países. Uma das tentativas em curso é a da Lenovo. Em 2004, o maior fabricante chinês de computadores pessoais surpreendeu o mundo e ficou com a divisão de PCs da IBM. Pagou 1,75 bilhão de dólares pelo desafio. Neste momento, começa a tirar a marca IBM de seus produtos e estampar Lenovo. É o início de uma batalha para ser objeto de desejo mundial. Há várias outras em curso.

A ida para o exterior, como investidores, é outra dessas batalhas. O China Construction Bank, o terceiro maior do país, está negociando a compra de 20% do Bear Stearns, um banco de investimentos americano. Será a primeira perna chinesa num banco de Wall Street. O governo autorizou no mês passado que os fundos de pensões estatais invistam fora do país. Ainda é coisa pequena. Prevê-se 1,1 bilhão de dólares neste ano. Mas a iniciativa deve ser vista como o início de um processo. "As empresas estatais, sobretudo no setor de energia, têm sido agressivas na compra de bens no exterior", disse recentemente a vice-ministra do Comércio, Ma Xiuhong. "Isso é apenas o começo."

Ao galgar novos patamares, a China tenderá a mudar de atitude com relação à pirataria e à falsificação. As vendas de produtos piratas e falsificados no país, segundo estimativas do próprio governo, são de 24 bilhões de dólares ao ano. É muito mais, reclamam as empresas lesadas. A verdade é que a China e seus governos locais empregam muita gente com a clonagem. E o pragmatismo do governo central manda adiar a solução do problema. Nem se pensa em desempregar por causa disso. Alguns tentam amenizar o problema lembrando que os EUA foram grandes piratas no século XIX. Mas atenção: não se deve achar que, pelo fato de os EUA terem agido assim, a questão seja menor. Atualmente, os custos de desenvolvimento de produtos são muito maiores – podem passar do bilhão de dólares nos setores automobilístico e farmacêutico. Além disso, com o planeta mais integrado, o que se copia ou rouba pode ser exportado para o mundo inteiro com rapidez. Finalmente, hoje existe um organismo mundial – a OMC – para controlar esses abusos, coisa em que nem se pensava antes.

Se em algum momento for um competidor forte em patentes e inovações, é óbvio que a China mudará de atitude: tentará que a OMC interfira a seu favor em processos de dumping. Em 2005, a China ficou em décimo lugar entre os países que mais solicitaram patentes à Organização Mundial de Propriedade Intelectual, à frente da Itália e do Canadá. Mas, por enquanto, por estratégia calculada vai atirando nas duas pontas. O Ocidente também age de maneira hipócrita em relação ao país: o nível de investimentos na China não pára de crescer, apesar do desrespeito à propriedade intelectual, das incertezas jurídicas, do emaranhado burocrático e da corrupção – quatro obstáculos que diminuiriam o ânimo de grandes empresas em qualquer país. Mas ninguém quer ficar fora da festa chinesa.

Apesar de toda a exuberância, a China ainda envia sinais contraditórios ao mundo. Alguns a vêem como ameaça. Outros como uma bolha prestes a estourar. Além do paradoxo de ter crescente grau de liberdade econômica debaixo do tacão de uma ditadura. Esses sinais contraditórios ela precisará dissipar. Um dos mais graves e evidentes problemas é a fragilidade do sistema financeiro. Seus bancos oficiais estão com um buraco fenomenal, provocado por empréstimos vencidos e não pagos. O FMI já se mostrou preocupado. Relatórios de empresas internacionais de consultoria chamam atenção para os "empréstimos ruins". As estimativas variam entre 450 bilhões e 900 bilhões de dólares – neste último caso o valor alcançaria as formidáveis reservas chinesas em moeda estrangeira, que são cerca de 1 trilhão de dólares. Mas há luzes no fim do túnel bancário. Em primeiro lugar, os bancos estrangeiros têm dado sinais de confiança. No último ano, diversas participações expressivas, mas minoritárias, têm sido compradas. No início do ano, por exemplo, um consórcio liderado pela Goldman Sachs investiu 3,8 bilhões de dólares no Banco Industrial e Comercial da China, o maior do país. Por causa de obrigações com a OMC, bancos estrangeiros poderão atuar na China a partir de 2007, o que certamente ajudará na profissionalização do setor.

Para manter a estabilidade política, o país é obrigado a crescer a taxas absurdas, perto de 10% ao ano. E seguir como destino de investimentos externos gigantescos, da ordem de 72 bilhões de dólares por ano. Muito menos do que isso poderá ser rastilho de pólvora para o descontentamento popular, que minaria as esperanças de dias melhores, sobretudo no campo. A China precisa continuar a fazer a transposição descomunal de gente da zona rural para a urbana. Algo como 200 milhões de pessoas nos próximos dez anos – número semelhante ao da última década. É o maior fluxo humano da história num período tão curto. Gente que servirá de braço para a indústria e para diminuir o inchaço de uma zona rural improdutiva e onde ainda vivem seis em cada dez chineses (veja reportagem na pág. 192). O país terá de conciliar isso com a garantia de alimento para todos, que, na cidade e com emprego, consumirão muito mais.

O avanço da China criou um grande paradoxo: a economia mundial é dependente dela para continuar pujante. Ao mesmo tempo, as conseqüências de seu crescimento atordoante poderão ser fatais para o meio ambiente, pelo menos no ritmo de hoje. Se, por hipótese, em vez de 300 milhões de chineses, o dobro disso estiver consumindo como gente grande, a escassez de matéria-prima poderá virar realidade. Atualmente, a renda per capita do chinês é de 1 300 dólares anuais, equivalente a 30% da brasileira. Ou seja, cada chinês consome em média como um angolano. Em termos de petróleo, isso significa, por exemplo, 1,6 barril ao ano. Se num prazo de dez anos 300 milhões de chineses atingirem os padrões de consumo dos EUA – isto é, 26 barris por ano per capita –, simplesmente não haverá petróleo para todos. A China é de uma ineficiência abissal no setor energético. Para cada dólar que produz, consome quase cinco vezes mais energia que os EUA e doze vezes mais que o Japão. Não se deve, no entanto, fazer essas contas e imaginar o fim do mundo. Se nada for feito para deter o desperdício, ele virá, fatalmente. Mas novas fontes de energia vêm sendo descobertas e o país está iniciando uma troca de matriz energética. É mais um desafio cujo sucesso interessa tanto à China quanto ao mundo.

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