Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 19, 2006

VEJA Entrevista: Márcio Thomaz Bastos


Só prender é pouco

O ministro diz que lotar as
prisões e impedir fugas é só o
começo. Os bandidos precisam
estar sempre vigiados


Otávio Cabral

Paulo Pinto/AE

"Tenho escolta 24 horas por dia. Isso causa tanta complicação que não tenho nem disposição de ir ao cinema"

O criminalista Márcio Thomaz Bastos, o ministro da Justiça que mais tempo ficou no cargo desde a volta do país à democracia, adora ser ministro da Justiça. "Nem sei como consegui viver tanto sem sê-lo", brinca. Mantém o gosto mesmo depois que o crime organizado passou a aterrorizar São Paulo e aumentaram as cobranças sobre o papel do governo federal. Com bom humor inalterado e sem levantar o tom de voz, o ministro defende sua gestão, insiste em que o envio de tropas do Exército à cidade é uma boa saída e, sem dar nome aos bois, responsabiliza a administração tucana pelo caos na segurança pública. O erro principal, diz ele, está em apenas prender e evitar fugas, como se isso bastasse. "O Estado também precisa controlar o que acontece dentro das prisões." Thomaz Bastos orgulha-se da eficiência que conseguiu dar ao que parece ser a vitrine de sua gestão, a Polícia Federal. "Meu sonho é transformar a Polícia Federal em um FBI. Acho que estamos nesse caminho."

Veja – O que está acontecendo em São Paulo?
Bastos – Tenho procurado ser o mais impessoal possível nesse debate, para não contaminá-lo com os interesses eleitorais, mas não há dúvida de que o problema em São Paulo resulta de um colapso na gestão penitenciária, da falta de investigação penitenciária. Não se pode pensar apenas em lotar as prisões, despreocupando-se do que acontece lá dentro. Estamos pagando o preço do equívoco de imaginar que, se o sujeito está preso e não foge, então está tudo bem. Não está. O Estado também precisa controlar o que acontece dentro das prisões. Não é simples, mas é possível. No Pará e no Ceará, por exemplo, existem bons modelos de gestão penitenciária.

Veja – O que São Paulo pode fazer já?
Bastos – Agora, não tem solução mágica, não tem milagre, não tem tiro de canhão. A única saída é integrar as forças de segurança, investir em inteligência e correição. É preciso reverter a situação em que se encontram os quatro segmentos da segurança pública. A Febem é caso notório de precariedade, o sistema carcerário está muito mal, as polícias precisam de uma reformulação e a Justiça paulista, que ainda está entre as melhores do país, encontra-se em crise, quase parando por sobrecarga.

Veja – O governo federal não tem culpa alguma?
Bastos – Não sei. Eu mesmo teria de fazer uma autocrítica. Talvez tenha faltado um pouco de dinheiro, mas, sinceramente, esse não é o aspecto mais relevante. O governo federal não investiu pouco em segurança. Se examinarmos somente o Fundo Nacional de Segurança Pública, investimos mais ou menos a mesma coisa que o governo anterior. Mas, se examinarmos o cenário global, incluindo a Polícia Federal, investimos muito mais. Suponho que ninguém desconheça a importância da Polícia Federal. Em algumas operações, a polícia pegou toneladas de cocaína e maconha que iam para São Paulo. Talvez tenhamos demorado um pouco para construir os presídios federais. Mas, até nisso, tenho de levar em conta que a lei existe desde 1984 e ninguém tinha feito. Foram cinco presidentes e dezenove ministros da Justiça que não tiraram esses presídios do papel. E não porque não quisessem, mas porque é difícil mesmo. Já inauguramos o presídio de Catanduvas, no Paraná. O de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, será inaugurado nas próximas semanas. O de Mossoró, no Rio Grande do Norte, e o de Porto Velho, em Rondônia, talvez saiam ainda neste ano. Mas no único presídio que já está pronto, o de Catanduvas, temos um preso apenas.

Veja – Quantos presos o governo paulista pediu para transferir para Catanduvas?
Bastos – Até agora, nenhum.

Veja – Como?
Bastos – Nenhum. Não recebemos nenhum pedido.

Veja – Por que o governo federal insiste na oferta de enviar tropas do Exército para São Paulo, quando se sabe que elas não poderão fazer praticamente nada? Isso não é jogo eleitoral?
Bastos – É um equívoco imaginar que as tropas do Exército não farão nada. Elas foram muito úteis no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e no Espírito Santo em situações semelhantes. Por que não seriam em São Paulo? Podemos mandar até 10 000 homens. Entre eles, há 4 000 especialmente treinados para guerrilha urbana. Não é recruta, é especialista. Os bandidos do PCC temeriam o Exército, que funcionaria como força de dissuasão. Não há nenhum jogo eleitoral nisso. Aliás, se o Exército desembarcasse em São Paulo e tudo desse errado, seria um desgaste para o governo. No entanto, isso não nos preocupa, e estamos certos de que a presença do Exército poderia, sim, ser muito útil para São Paulo.

Veja – O senhor está dizendo que o governo de São Paulo é que faz jogo eleitoral ao recusar o Exército?
Bastos – Estou dizendo apenas que as tropas do Exército estão à disposição de São Paulo e manifestando minha certeza de que elas podem ser muito úteis.

Veja – O que é o PCC?
Bastos – Na verdade, sabemos sobre o PCC menos do que gostaríamos. Qualitativa e quantitativamente. Os estudos teóricos ainda são muito incipientes, mas planejo fazer um acordo entre União e governo paulista para estudar o PCC a fundo. A falta de informação torna o PCC um mistério, uma lenda. A desinformação aliada ao período eleitoral dá margem até a leviandades, como a insinuação de que o PT tem ligações com o PCC. Essa quadrilha quer dinheiro do tráfico de drogas, de assalto, de roubo de carga. Não há nenhuma informação de vinculação política, que eu saiba, e, se houvesse, eu saberia.

Veja – A crise aguda na segurança pública significa que vivemos uma crise institucional?
Bastos – Há muito tempo tenho a idéia de que o Brasil não vive uma crise normativa, mas uma crise institucional. No iluminismo, Montesquieu dizia que não se constrói uma sociedade baseada na virtude dos homens, mas na solidez das instituições. É verdade. Não se combatem a corrupção e o crime sem instituições fortes e efetivas. Um amigo meu tem uma tradução livre do pensamento de Montesquieu. Diz que a pessoa não se detém por ser honesta, mas por ter medo. Sempre achei isso. Mas, apesar da crise, temos tido avanços notáveis.

Veja – Quais?
Bastos – Há instituições que melhoraram muito. O Banco Central trabalha com independência, a Receita Federal opera num padrão de impessoalidade, o Poder Judiciário começou a ser reformado. A criação do Conselho Nacional de Justiça, que mal começou sua tarefa, já apresentou grandes progressos no combate ao nepotismo, na definição de um teto salarial, coisas assim. O afastamento do presidente do Tribunal de Justiça de Rondônia é um exemplo. Para falar da minha área, diria que a Polícia Federal também avançou tremendamente.

Veja – Como foi o trabalho para colocar a Polícia Federal no estágio atual?
Bastos – Parti da premissa de que as instituições são feitas de homens e, por isso, procurei escolher um bom diretor-geral. Com ele, passamos a executar esse projeto de corregedoria rigorosa e planejamento estratégico. Está dando certo. Nos últimos três anos, a Polícia Federal executou 280 operações especiais e, como fruto do planejamento, sem dar um único tiro. Passamos a usar instrumentos modernos de investigação, como o monitoramento telefônico, a prisão temporária como meio de obtenção de provas, a busca e apreensão e o treinamento de um grupo especial. Esse grupo tem 1.500 homens, com grande know-how e grande mobilidade. Outro dia, numa conversa com o novo embaixador dos Estados Unidos em Brasília, disse a ele que meu sonho era transformar a Polícia Federal em um FBI. Acho que estamos nesse caminho.

Veja – Qual a garantia de que, sob qualquer novo governo, a Polícia Federal seguirá nesse caminho?
Bastos – Acredito que, se a polícia continuar operando com essa independência, com esse orgulho que seus homens demonstram, por mais uns quatro, seis anos, não terá mais retrocesso. Ficará definitivamente constituída como uma instituição de Estado. E aí, mesmo que algum governante queira usá-la no jogo político, não conseguirá. É o que está acontecendo com o Ministério Público, que vem sendo ocupado, neste governo, por um procurador-geral que é da preferência da classe.

Veja – A Justiça brasileira é muito corrupta?
Bastos – O Judiciário sofre com a falta de adequação aos tempos modernos, às boas normas de gestão. Precisa abandonar rotinas envelhecidas, investir em informática. Precisa mudar de mentalidade, superar a tradição patrimonialista. Já o problema da corrupção é generalizado, antigo, enraizado. Sei de casos em que o dinheiro influenciou determinantemente em decisões judiciais, mas...

Veja – Que casos?
Bastos – Não posso nem vou nomeá-los, porque estão sob investigação, mas não acho que a Justiça brasileira seja mais corrupta do que outros organismos nacionais.

Veja – Qual foi seu pior momento no governo?
Bastos – Quando fui acusado de ter tentado ajudar o Palocci no episódio do caseiro. Achei que era injusto, que tinha conteúdo político. Aquilo me machucou. Mas nunca pensei em sair do ministério, nem no auge dessa crise.

Veja – No caso do caseiro e também no caso do mensalão do PT, o senhor concorda com a análise de que confundiu a figura do advogado de defesa, orientando os suspeitos, com a de ministro da Justiça, que deveria investigá-los?
Bastos – Nunca advoguei, nunca orientei, nunca fui assediado, instado a inventar ou coordenar a defesa de quem quer que fosse. Tenho uma fama até imerecida de grande advogado. No governo, é claro que o presidente me consulta sobre temas jurídicos, pois não iria fazê-lo com ministros. Nunca usei minha expertise profissional para ajudar o governo. Pelo contrário. Sempre dei ordens para que a Polícia Federal investigasse quem quer que fosse, sem perseguir inimigos e sem proteger amigos. Já ouvi, nas imediações do PT, que sob meu comando a Polícia Federal é tucana. E, entre os tucanos, que é petista. Já ouvi de tudo. Já me acusaram de montar a defesa do governo no caso do mensalão, criando a tese do caixa dois, mas também já me acusaram de ter dito que caixa dois era coisa de bandido...

Veja – A VEJA, secundada por parte da imprensa, fez revelações que o colocaram no epicentro daqueles escândalos...
Bastos – Sou como aquele juiz americano que disse que a imprensa existe para ser livre, e não para ser justa.

Veja – O senhor faria tudo de novo?
Bastos – Rigorosamente, tudo de novo. O deputado Rodrigo Maia (líder do PFL na Câmara) pediu que a Comissão de Ética Pública analisasse minha conduta no caso do caseiro. Por unanimidade, a comissão decidiu que não infringi nenhum artigo do Código de Conduta da Alta Administração Federal.

Veja – O governo Lula conseguirá exorcizar a percepção de que tolerou e até se beneficiou da corrupção?
Bastos – Este governo está combatendo a corrupção e a sociedade está tendo essa percepção. A cada dia encontro mais gente que se convenceu de que estamos combatendo a corrupção com eficiência. É um governo que investiga as denúncias e apresenta resultados. Agora, não é só combate à corrupção. Uma das razões que me deixam muito satisfeito é ter chegado ao final do mandato de Lula com um país um pouco menos desigual, com distribuição de renda. Se Lula tivesse chegado ao fim desses quatro anos sem distribuir renda, não teria sentido.

Veja – Com tudo o que está acontecendo, com eleição presidencial e PCC em São Paulo, sua segurança foi reforçada?
Bastos – Sim. Em São Paulo, eu andava com três seguranças em um carro. Agora, são seis seguranças em dois carros. Em Brasília, também aumentou. Tinha dois seguranças, hoje ando com três. Tenho escolta 24 horas por dia, mas a dispenso quando chego ao hotel onde moro em Brasília. É tanta complicação que não tenho nem disposição de ir ao cinema.

Veja – O senhor nunca foi ao cinema em Brasília?
Bastos – Não vou ao cinema, ao teatro, a show. Tenho uma vida pobre em Brasília. Vou para o trabalho de manhã, volto para o hotel por volta das 9 da noite, janto, escrevo no meu diário, leio e durmo. Adoro meu trabalho no ministério, mas minha vida pessoal em Brasília é pobre. Minha mulher não está aqui, minha filha não está aqui, a maioria dos meus amigos não está aqui. Se fosse em São Paulo, estaria saindo à noite, faria ginástica no clube ao ar livre, em vez de usar essa academia improvisada no meu quarto de hotel. Se eu tivesse feito outra opção no começo, arrumado uma casa, um lugar mais confortável, talvez estivesse mais bem adaptado. Em janeiro passo o cargo ao sucessor e volto para São Paulo.

Veja – Se Lula for reeleito, o senhor não ficaria mais quatro anos no cargo?
Bastos – Meu plano era ficar quatro anos em Brasília, e vou cumpri-lo.

Veja – O senhor vai se aposentar?
Bastos – De jeito nenhum. Com 71 anos, já tenho direito ao ócio com dignidade, mas não quero ócio. Quero voltar a trabalhar como advogado. Preciso ir com cuidado. Ajudei a indicar seis dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal. Não quero que pareça que estou usando uma eventual influência que possa ter. Não quero passar por lobista. Tenho de ser sério e também parecer sério.

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