Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 19, 2006

Loucura com método

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O estranho mundo de Gonçalo M. Tavares,
grande revelação da literatura portuguesa


Moacyr Scliar

Fabio Motta/AE
O prolífico Tavares: mais de dez livros em cinco anos



O romance Jerusalém (Companhia das Letras; 232 páginas; 39 reais) não se passa na cidade que lhe dá título. Esta só aparece em uma referência ao salmo 137: "Se eu me esquecer de ti, Jerusalém, que seque a minha mão direita". E a citação, por sua vez, funciona como uma das muitas metáforas de uma obra densamente metafórica. Ganhador de dois prêmios importantes de Portugal – o Ler/Millenium e o José Saramago –, Jerusalém é o primeiro livro de uma tetralogia que Gonçalo M. Tavares intitulou de O Reino. "Escrevo para responder à estranheza de estar vivo", já declarou o escritor português. A estranheza, de fato, é o mote desse livro surpreendente.

Tavares nasceu em Angola, então uma conflituosa colônia de Portugal, em 1970. Estreou na literatura em 2001, e desde então já publicou mais de uma dezena de livros – no Brasil, é conhecido por títulos como O Senhor Brecht (Casa da Palavra) e 1 (Bertrand Brasil). Além de prolífico, Tavares é também um dos mais criativos escritores portugueses contemporâneos, como o leitor pode confirmar em Jerusalém. Aparentemente, trata-se de uma narrativa realista. Mas não sabemos onde se passa a história, tampouco há continuidade cronológica. Em uma narrativa bem tramada, sempre oscilando entre o passado e o presente, o leitor é apresentado a Theodor e Mylia Busbeck. Ele, médico, faz pesquisas na área da saúde mental. Partindo do princípio determinista de que tudo é previsível, elabora uma gigantesca tese sobre "a distribuição do horror ao longo dos séculos". Mylia, que foi paciente de Theodor e com ele se casou, é esquizofrênica e passa um longo período em uma clínica psiquiátrica. Internada, tem uma relação sexual com outro paciente, Ernst Spengler. Os dois têm um filho, que Theodor registra como seu, depois de se divorciar de Mylia.

É a loucura o tema de Jerusalém? Em parte. O que temos aqui é uma volta ao conceito de "loucura moral", que dominou a psiquiatria do século XIX e aparece, por exemplo, em O Alienista, de Machado de Assis – conceito esse que foi responsável pela repressão, não raro brutal, nos hospícios da época. Tavares, porém, não se embrenha em discussões médicas. Para ele, a doença é o ponto de partida para uma reflexão sobre a condição humana. Apesar de tudo, é no manicômio que Mylia afinal encontra sua identidade – ainda que tenha sido uma identidade transgressora, fundada na infidelidade matrimonial. Eduardo Lourenço, decano da crítica literária em Portugal, diz que Gonçalo M. Tavares "chegou para ficar, num espaço só seu". Jerusalém permite que o leitor conheça esse espaço original e perturbador.

Um passo diabólico

"Mylia era uma mulher magra, mas forte. Não utilizava os dedos para ninharias. (...) Os dedos devem tocar só no que é espesso, no que é fundamental; o urgente tem de coincidir com o essencial. Como uma pancada forte no momento em que a recebemos: todas as coisas do dia mais insignificante se devem aproximar desse momento em que se recebe uma pancada forte. Mylia olhava-se ao espelho: estou viva e já dei um passo mau. Estar doente é ter dado um passo mau, um passo diabólico."

Trecho de Jerusalém


Leia trecho de Jerusalém,
de Gonçalo M. Tavares

Capítulo I
Ernst e Mylia

Ernst Spengler estava sozinho no seu sótão, já com a janela aberta, preparado para se atirar quando, subitamente, o telefone tocou. Uma vez, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze, catorze, Ernst atendeu.

Mylia morava no primeiro andar do número 77 da Rua Moltke. Sentada numa cadeira desconfortável pensava nas palavras fundamentais da sua vida. Dor, pensou, dor era uma palavra essencial.

Havia sido operada uma vez, depois outra, quatro vezes operada. E agora aquilo. Aquele ruído no centro do corpo, no miolo. Estar doente era uma forma de exercitar a resistência à dor ou a apetência para se aproximar de um deus qualquer. Mylia murmurou: a igreja está fechada de noite.

Quatro da manhã do dia 29 de Maio, e Mylia não consegue dormir. A dor constante vinda do estômago, ou talvez mais de baixo, de onde vem exactamente a dor larga, que não pertence a um ponto? Talvez da parte de baixo do estômago, do ventre. O certo é que eram quatro da manhã e ainda não descansara um minuto. Fechar os olhos quando se tem medo de morrer?

Levantou-se. Mylia era uma mulher magra, mas forte. Não utilizava os dedos para ninharias. (Muitas vezes repetia a frase: não utilizar os dedos para ninharias.) Concentrava-se; sabia que tinha poucos anos de vida; a doença veio: ficamos juntas uns anos, depois ela permanece e eu parto. Pois bem, havia que concentrar a energia que existe nos dias ou que existe num corpo e se dirige aos dias, concentrá-la - à energia - como a um rolo de carne, estar pronta para agir. Dispensando ninharias. Os dedos devem tocar só no que é espesso, no que é fundamental; o urgente tem de coincidir com o essencial, com o que altera de alto a baixo. Como uma pancada forte no momento em que a recebemos: todas as coisas do dia mais insignificante se devem aproximar desse momento em que se recebe uma pancada forte. Mylia olhava-se ao espelho: estou viva e já dei um passo mau. Estar doente é ter dado um passo mau, um passo diabólico, murmurou Mylia. Uma doença que altera de alto a baixo.

Mas nesse dia, às quatro da manhã, decidira sair de casa. De noite a dor desce sobre o corpo de modo distinto. Como um concentrado químico, uma substância que lentamente desliza por um declive mínimo que os olhos mal conseguem perceber. Entre o dia e a noite a superfície não é plana. Um ligeiro declive.

Concentrada a dor nesse sítio largo que não era um ponto - entre o baixo estômago e o ventre - Mylia estava na rua à procura de uma igreja.

Surpreendido, um vagabundo diz que não sabe. Uma igreja?, pergunta.

É de noite, diz o homem, podem roubá-la. Não deve procurar uma igreja, mas sim a polícia para a proteger. Onde quer ir a estas horas? Eu podia roubá-la, senhora.

Mylia sorriu, afastou-se. A dor não a deixava concentrar--se num diálogo.

Não quero a polícia, quero uma igreja. Sabe se estão fechadas a esta hora?

Os pés distantes dos sapatos. Era evidente que os sapatos rasos, à homem, que Mylia usava, obedeciam ao movimento dos pés. Ossos e músculos têm vontade, o material de que são feitos os sapatos não. O material de que são feitos os sapatos é treinado para obedecer, sobre isso não tinha dúvidas. Obedeçam sapatos, murmurou Mylia, com uma perversão ingénua. Como as substâncias se separavam logo à partida entre as que avançavam com a vontade própria e as que esperavam com obediência estática (e nisso dividiam-se como alguns homens)! Os sapatos eram a obediência pura, a escravidão mesquinha, enojavam-lhe naquele momento; a sabujice destes materiais em relação ao homem. Nenhum cão é tão sabujo como estas substâncias.

Não há possibilidade de diálogo entre substâncias que nascem logo em campos opostos, em campos, não inimigos, que isso seria pensar na possibilidade de combate, de chamamento de energias, possibilidade de elevação do homem que agarra na arma para combater; ali, pelo contrário, o afastamento não era entre substâncias inimigas ou entre dois predadores que se preparam para combater por um pequeno território; tratava-se simplesmente de passividade absoluta de um lado, e do outro energia forte, que constrói ou destrói, mas que modifica sempre. Não somos uma coisa que espera, murmura Mylia, enquanto avança a passos fortes para a igreja.

- A igreja está fechada. Sabe que horas são? Quase cinco da manhã. E não deveria estar aqui. De noite esta zona é má, é uma zona perigosa.

Mylia sentiu vontade de rir em frente ao bom homem. Zona má porque perigosa! Ela que vem com a doença, uma doença que já está dentro e a vai matar num ano, dois, não mais. Ela que está com a morte fechada num sítio de onde já não sai; ela quer precisamente o perigo, aquilo que ainda a excite, que ainda revele nela energia suplementar. Esteve à beira de dizer ao homem, certamente trabalhador na igreja em ofícios menores, esteve tentada a dizer: se esta zona é perigosa, não é uma zona má. Aqui se poderá construir.

Porque o perigo era uma pergunta para a qual se teria de encontrar resposta rapidamente. E o que necessito é de uma boa pergunta, de uma pergunta exacta, pergunta que me obrigue a encontrar uma grande resposta, aquilo que dê sentido. A doença já não é um lobo que eu possa assustar com algo mais forte. Não é o lobo assustável, já não se separa de mim.

Mylia disse:

- Não tenho medo do perigo, só queria entrar na igreja, agora.

- São cinco da manhã. Está tudo a dormir. Esta zona é perigosa. Deve voltar a casa. De manhã já todos descansámos; nessa altura encontrará o que quer. A esta hora não se recebem bons conselhos. As pessoas estão cansadas.

Mylia permaneceu por instantes em silêncio; contorceu--se com a dor estranha que sobressaía, lateralmente, da grande dor constante vinda do estômago. Esta outra dor vinha de um sítio mais acima.

- Desculpe, senti uma dor.

- Deve regressar a casa; é muito tarde.

Mylia recompôs-se. Perguntou:

- Há alguma igreja que ainda esteja aberta?

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