Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 05, 2006

VEJA Entrevista: Dunga

Entrevista: Dunga
A "era do coletivo"

O novo treinador da seleção acha que o
futebol deixou de ser romântico e diz que o
time ideal é um misto de Romários e Dungas


Ronaldo Soares

"Política, moda e economia evoluíram.
Por que as pessoas
querem que os
jogadores continuem
como nos anos 50, 60?"

Pelo menos no discurso, não se nota que o novo treinador da seleção brasileira é um estreante na profissão. Dunga – ou Carlos Caetano Bledorn Verri –, 42 anos, pontua seu raciocínio com ensinamentos extraídos de livros de auto-ajuda. Sua familiaridade com o tema preferido de dez entre dez técnicos de futebol vem das muitas palestras motivacionais que fazia para empresários (a 20 000 reais cada uma). Mas a neurolingüística deve ser o único ponto em comum entre a seleção do gaúcho Dunga e as de seus antecessores. O homem cujo apelido já foi sinônimo de futebol sem graça (a era Dunga) diz que vai acabar com as regalias das estrelas – decretou que não haverá mais quartos individuais para jogadores, uma das exigências de Ronaldo e companhia na última Copa. O novo treinador escolheu até um epíteto para seu trabalho à frente da equipe: a "era do coletivo". Na semana passada, momentos depois de fazer sua primeira convocação, Dunga concedeu a seguinte entrevista a VEJA.

Veja – Sua única experiência no comando de uma equipe de futebol foi na adolescência, treinando o time dente-de-leite de sua escola, em Ijuí. Assumir a seleção brasileira não é um salto grande demais?
Dunga – É um salto, mas com responsabilidade. Sei que vou ter de aprender muita coisa rapidamente. Tenho conversado com muitos treinadores para tentar adquirir experiência e entender melhor como trabalhar em grupo. Sei que tenho de acelerar meu aprendizado, por causa da cobrança que vai haver. O mais importante é que a equipe tenha postura, seja vibrante e se identifique muito com o povo brasileiro.

Veja – Se você fosse presidente de um grande clube, colocaria um treinador inexperiente para dirigir seu time?
Dunga – Para vencer é preciso ter coragem, correr riscos. Nada do que você faz na vida tem garantia de que dará certo, mas é preciso tentar. No futebol, há casos de pessoas experientes que deram certo e que deram errado, assim como há casos de novatos que deram certo e outros que não funcionaram. Não pode haver preconceito pelo fato de a pessoa ser iniciante.

Veja – A seleção que foi à Alemanha ficou marcada pela apatia da comissão técnica, o que fez a CBF procurar um técnico com o perfil do Bernardinho, do vôlei. Você se imagina como ele, quicando e berrando à beira do gramado?
Dunga – Admiro muito o Bernardinho, mas a gente não pode confundir as coisas. Ele tem vibração, joga junto com a equipe, mas não é só isso. Bernardinho tem um trabalho qualificado. Não é só ficar gritando, berrando. Tem de ter conteúdo, até mesmo para haver cobrança.

Veja – Até onde vai sua autonomia na seleção? Já se comentou que a CBF teria feito uma relação de nomes para dentre eles você escolher a comissão técnica e até sugerido que não fossem convocados muitos jogadores novatos, para evitar um fracasso logo no começo.
Dunga – Tenho carta-branca para trabalhar. Tanto é verdade que o presidente Ricardo Teixeira vai dar um suporte especial, sabendo que é a minha primeira experiência como treinador. Ele me deu total liberdade para escolher os jogadores que eu quisesse. Com relação à comissão técnica, a mesma coisa. Os nomes escolhidos não vieram de lista nenhuma. São pessoas qualificadas, competentes, que poderiam estar em qualquer seleção do mundo.

Veja – Mas o que é exatamente esse suporte especial do Ricardo Teixeira? Ele vai interferir no seu trabalho?
Dunga – Não é isso. Suporte especial significa que posso me dirigir diretamente a ele no caso de qualquer problema. Em qualquer turbulência, qualquer problema meu ou da comissão técnica, terei a liberdade de me dirigir a ele, que vai agir em seguida.

Veja – Quando era jogador, na Copa de 98, você ficou indignado porque a seleção encurtou um treino para comparecer a um evento do patrocinador. Como agirá agora, como técnico, sabendo que a relação da CBF com os patrocinadores às vezes interfere no trabalho da seleção?
Dunga – A figura importante é a seleção brasileira, essa é a prioridade. Sponsor (patrocinador) é um assunto totalmente administrativo, não tem nada a ver com o meu trabalho. Agora, lógico que cada sponsor tem seu relacionamento com a CBF. Duvido que um clube de futebol que tem um sponsor não vá tratar bem esse cara. Só que isso não tem interferência nenhuma no trabalho de campo. No caso dos amistosos feitos a pedido do patrocinador, acho que o Brasil tem de jogar. Principalmente neste momento de formar a seleção. E tem de jogar com todo mundo, não importa o nível do adversário.

Veja – Você andou dizendo que vai se inspirar na lição das mães para esse trabalho na seleção. O que significa isso exatamente?
Dunga – Costumo falar nas minhas palestras que a gente sempre busca um líder na política, na guerra, nas batalhas, mas no fundo o maior líder que a gente pode encontrar é a nossa mãe. Porque quem tem mais paciência nos momentos mais turbulentos de uma família? É a mãe, a mulher. Quem mais quer que seu marido, seus filhos, se dêem bem na vida? É a mãe. Quem tem mais paciência do que uma mãe? Nos momentos mais difíceis da vida, a mãe sabe usar sua autoridade. E sempre na hora certa.

Veja – É difícil imaginar você como uma mãezona, passando a mão na cabeça dos jogadores. Pelo que você foi como jogador, é de esperar um técnico rígido.
Dunga – Não tem essa de treinador rígido. Tudo depende do comportamento dos jogadores. Tem de ter hierarquia, cada um dentro do seu espaço, sabendo dos seus limites, sempre consciente de que o mais importante é o coletivo. Está mais do que comprovado, em todos os setores, que quando o coletivo é forte a individualidade se destaca. Em qualquer esporte, em qualquer outro setor da sociedade, se o coletivo funcionar, todo mundo sai ganhando. Então não se trata de adotar uma linha mais ou menos rígida, e sim seguir o que tem de ser feito. Se todo mundo se comportar bem, não tem por que ser rígido. Agora, se alguém sair da linha, aí vai ter intervenção.

Veja – Isso significa que você vai adotar um código de conduta? O que vai ser liberado? Sexo na concentração, por exemplo, será autorizado? E jogador cair na farra durante a Copa do Mundo?
Dunga – Vamos analisar o dia-a-dia. O que vai valer são as regras do bom senso. A gente convive em grupo. O que for bom para o grupo vai ser feito. Quanto maior a convivência, melhor. A gente vai descobrir que cada um tem de ceder um pouquinho para viver bem com o outro. Tudo tem seu momento certo, sua hora certa. Não acredito que se o cara ficar uma semana ou duas sem fazer determinado tipo de coisa ficará prejudicado. Depois ele vai ter quatro anos para fazer.

Veja – Uma imagem que marcou sua carreira foi, na final da Copa de 94, você aparentemente xingando os críticos enquanto erguia a taça. Hoje você está mais preparado para aceitar críticas?
Dunga – Eu não xinguei a imprensa ou os críticos. Xinguei o jornalista (um fotógrafo) na minha frente, que queria que eu fizesse uma pose, fizesse caras e bocas para uma foto boa para ele. Aquilo ia contra tudo o que aquela seleção representava: o trabalho em equipe, todo mundo junto, sem vantagens individuais, sem regalias. Meu palavrão foi para o egoísmo de um cara em um momento tão especial para mim. Você acha que no momento mais importante da minha vida eu iria pensar em críticas, em coisas negativas?

Veja – Se numa Copa do Mundo fictícia um jogador do seu país ajeitasse o meião durante uma cobrança de falta do time adversário, outro se apresentasse 10 quilos acima do peso e outro ainda só pensasse em recordes individuais, o que você faria como treinador?
Dunga – O que o torcedor sempre quer é um jogador vibrante, que esteja concentrado no objetivo da seleção brasileira. Quando se perde, isso não acontece por causa de uma situação apenas, mas de várias. Tanto a vitória quanto a derrota são decorrência de vários fatores que vão se acumulando e que no final você não consegue mais controlar.

Veja – Dando nome aos bois, então: Roberto Carlos, Ronaldo e Cafu estão nos seus planos?
Dunga – Não falo em nomes. Tudo vai depender de quem estiver em melhores condições no momento. Ninguém joga com o nome. Se essas pessoas se tornaram famosas, foi pelo que fizeram dentro de campo, então têm de continuar fazendo isso. E quem estiver bem, independentemente de nome, vai jogar.

Veja – O que é mais vital: jogar para fazer gol ou para não levar gol?
Dunga – Para fazer gol é preciso recuperar a bola o mais rápido possível. É como uma casa: é mais fácil construir a base primeiro. Ninguém começa uma casa pelo telhado. No campo, é a mesma coisa. Primeiro tem de dar um suporte atrás, para que depois o ataque possa fazer gol.

Veja – E o que você prefere: jogar bonito, mesmo que perca, ou ganhar de qualquer jeito, mesmo jogando feio?
Dunga – Tem de tentar aproximar ao máximo esses dois conceitos: vencer e ter um bom desempenho. Sou fã do futebol do Internacional dos anos 70, do São Paulo de Cilinho e Telê Santana, do Flamengo de Zico, das cinco vezes em que o Brasil foi campeão do mundo. Essas equipes souberam mesclar eficiência com jogo bonito. O futebol da seleção de 82 e o da de 94 seriam o casal perfeito para mim. É como uma combinação de Romário com Dunga. Os dois sempre quiseram vencer da sua maneira. Mas, se forem onze Dungas num time, que chatice desgraçada. Se forem onze Romários, que marra desgraçada. Tem de ter os dois, tem de ser uma mescla.

Veja – Você soube aproveitar o futebol para dar um passo adiante, investindo em cultura e conhecimento. Por que em geral nossos jogadores não conseguem ir além do circuito carrões-mulheres-badalação?
Dunga – O cara muitas vezes sai de uma situação em que não tem uma boa estrutura familiar e social e de uma hora para outra vira uma personalidade. Isso mexe com a cabeça dele. O que não é exclusividade do jogador de futebol. Entre advogados, médicos, artistas, jornalistas que da noite para o dia estouraram, muitos também cometeram erros. No caso do jogador, isso já melhorou bastante, e a tendência é melhorar ainda mais, por causa do maior acesso à informação. Porque não está ligado diretamente à escolaridade do cara o fato de ele ser inteligente ou não. Não é por ser formado que o cara é culto. Ele pode ter muita informação, mas cultura é uma coisa um pouquinho diferente. As pessoas acham que cultura é só o cara conhecer museus, quadros, cidades importantes. Isso também faz parte, é informação que se pode adquirir. Agora, você saber se comportar num lugar, saber respeitar as pessoas, saber seguir as regras da sociedade, isso começa a ter conotação de cultura. Isso vem quando você sabe aproveitar as informações que recebe.

Veja – A Fifa está cada vez mais empenhada em combater o racismo no futebol. Você acha que esse é um problema com o qual as autoridades esportivas brasileiras devam se preocupar também?
Dunga – O que existe, tanto aqui quanto lá fora, é preconceito, independentemente de questões como cor, raça ou religião. O cara passa com o carro, as duas perguntas são: teve sorte ou roubou? Nunca se fala que o cara trabalhou, se dedicou, sofreu para ter aquilo. No futebol, é preciso saber que o adversário vai xingar. Mas, quando há um bate-boca entre dois jogadores, tem de resolver ali. Não pode passar para a torcida nem para a imprensa. Acabou, acabou. Aquilo que é do campo tem de morrer dentro do campo.

Veja – Por que no fim de sua carreira você doou o dinheiro da rescisão com o Internacional (370 000 reais, em 2000) a uma instituição de caridade?
Dunga – Sou um cara que procura ser justo. Sempre tive aquele negócio: se eu trabalhei, eu mereço. Era um dinheiro a que eu legalmente tinha direito, só que eu não tinha trabalhado para receber. Não achava justo, não ia trazer felicidade para mim, ia ser uma ferida que ficaria aberta o resto da minha vida. Então preferi esse gesto, como forma de retribuição. Seria muito egoísmo da minha parte o futebol ter me dado tanto, meu país ter me proporcionado tanta coisa, ter me dado uma oportunidade na seleção brasileira, e eu não fazer nada em troca. Foi uma forma de retribuir uma parcela das oportunidades que a sociedade me deu.

Veja – Você acredita que ainda existe amor à camisa ou o futebol virou apenas uma operação de marketing?
Dunga – O futebol evoluiu. A gente quer que o futebol continue naquela era romântica, que era bonita nos anos 50, mas as coisas evoluíram. A política evoluiu, a economia evoluiu, a moda evoluiu, e a gente quer que o futebol permaneça no mesmo estágio. A gente quer que o jogador seja um romântico, como muitos daqueles jogadores dos anos 50 e 60, que não conseguiram construir uma vida e dos quais muita gente se aproveitou. A gente quer que todo o resto do país ande, que tudo o que está ao redor do futebol evolua, mas que o jogador continue naquela monotonia. Hoje isso não é mais possível. O jogador tem de ter a vida dele fora de campo, os compromissos de marketing ou o que for. Agora, quando entrar para treinar e para jogar, ele tem de esquecer o resto. Entrou em campo, tem de respeitar o torcedor, a empresa, os patrocinadores, o treinador, o adversário. Tem de jogar, tem de se entregar totalmente.

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