Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 05, 2006

VEJA Cuba depois de Fidel


A doença grave que tirou o ditador de cena
coloca os cubanos diante do dilema de iniciar
uma transição para a democracia ou aceitar
uma reles sucessão em família. O maior enigma
é como será a ilha sem o comandante-em-chefe


Jaime Klintowitz


Roberto Candia/AP
Fidel discursa na Argentina, no mês passado: um ator que viveu para o papel que criou para si próprio

No final, el comandante en jefe viu-se nocauteado por um inimigo que ele não pôde prender, torturar ou fuzilar no paredón: a idade. Na semana passada, faltando treze dias para completar 80 anos, Fidel foi internado e submetido a uma cirurgia de emergência por causa de uma hemorragia intestinal atribuída ao stress. Pelo menos é o que diz o comunicado oficial do governo cubano. Visto que seu estado de saúde foi declarado "segredo de Estado" e o país fechou suas fronteiras aos jornalistas estrangeiros, só se pode especular sobre as chances de recuperação do homem que há 47 anos governa Cuba com a desfaçatez de um senhor feudal. Uma coisa é certa: a situação é grave o bastante para ele transferir "temporariamente" o poder para o irmão Raúl, ministro da Defesa e sucessor designado. A possibilidade de Fidel se recuperar e, como seu pai, viver além dos 80 não pode ser descartada. De qualquer maneira, a internação sinaliza o fim do reinado. O que está no ar é uma questão crucial: depois dele, o que será de Cuba?

A transferência do poder oferece poucas indicações sobre o que vem a seguir. Aos 75 anos e sem vestígio da personalidade magnética do irmão, Raúl é, até pela idade, uma figura transitória. Nos países nos quais uma só pessoa concentra todo o poder, como Cuba, a sucessão é sempre um dilema atordoante. Nenhum regime comunista conseguiu criar uma fórmula de transição regular de poder. O processo é nebuloso e cercado de rumores sobre carnificinas nos bastidores. Muitos manda-chuvas chegaram a permanecer nominalmente chefes de Estado apesar de terem passado longo tempo incapacitados de governar. Em Cuba, a situação é ainda mais confusa, pois a única bandeira do regime é o carisma de Fidel e seu antiamericanismo. Antes de saber quem vai segurar o leme quando o grande timoneiro partir, a questão é se a criatura pode sobreviver ao criador.


Valdemir Cunha, AP e Egilda Gomez/AP
Cinco décadas de comunismo resultaram num país arruinado (à esq., Havana). Para sobreviver, Cuba recorreu a beneméritos no exterior. Acima, à direita, Fidel com o soviético Nikita Kruschev, em 1960, e com Hugo Chávez, em 2001: troca de padrinhos

Não se vê em Cuba ninguém com o talento e o currículo necessários para o cargo de comandante-em-chefe. Os cubanos não gostam de Raúl. Chamam-no desdenhosamente de "China", acham seus modos afeminados e suspeitam que herdou os traços orientais de um outro pai, não aquele casado com sua mãe. "Para piorar, é um beberrão", disse a VEJA o cubano Jaime Suchlicki, diretor do Instituto de Estudos Cubanos da Universidade de Miami. Meio século atrás, Fidel tirou proveito da Guerra Fria para derrubar um sargento ignorante e impopular. Sua herança é uma ilha sem liberdade, uma economia destroçada e o trauma de um dos maiores êxodos de refugiados da história moderna. A Revolução Cubana ainda soa romântica e atrativa para muitos desatentos. Não deveria ser assim, pois a Cuba de Fulgencio Batista era, em muitíssimos aspectos, melhor para os cubanos que a de Fidel. Antes da revolução, os cubanos usufruíam a quarta maior renda per capita da América Latina. De lá para cá, caiu para a 29ª posição. O açúcar era o único item importante da pauta de exportações no tempo de Batista. Continua a ser no tempo de Fidel, só que em 2005 a produção atingiu seu menor volume desde 1907.

A revolução castrista sufocou a efervescência intelectual e musical que envolvia Havana e Santiago. Escritores como Guillermo Cabrera Infante deixaram a ilha para escapar da censura. O cantor Ibrahim Ferrer – que no fim da vida foi relançado no circuito internacional por um produtor americano – teve a carreira bruscamente interrompida e engraxou sapato para sobreviver. Tudo o que a ilha produziu no regime comunista foram artistas oficiais selecionados pelo critério da fidelidade ao regime, e não pela qualidade de suas obras. Se tivesse seguido a vocação turística das ilhas caribenhas e explorado os benefícios oferecidos pela geografia – a paisagem deslumbrante e a proximidade com os Estados Unidos –, Cuba provavelmente seria tão rica quanto a vizinha Bahamas, arquipélago turístico cuja renda per capita é seis vezes maior que a cubana.

O grande feito de Fidel foi pegar uma ilha caribenha, famosa pelos cabarés e charutos, e a colocar no centro das preocupações internacionais. Em 1962, na crise dos mísseis, o mundo quase sucumbiu a uma guerra nuclear por causa de seu atrevimento. Os historiadores do futuro talvez venham a qualificar Fidel Castro entre os mais sangrentos farsantes de todos os tempos. No início de 1959, quando derrubou Batista, el comandante nem sequer era marxista. O comunista era o irmão, Raúl. As promessas de combate à corrupção e de dignidade nacional, feitas pelo revolucionário em Sierra Maestra, encaixavam-se muito melhor na vaga tradição populista cubana do que no marxismo-leninismo. O que aconteceu nos meses de hesitação ideológica, até o regime se declarar socialista, em 1961, é objeto de debates. Um mito persistente é o de que a hostilidade americana empurrou o jovem guerrilheiro para os braços soviéticos. A verdade provavelmente é mais prosaica: o ditador cubano é um demagogo cujo único compromisso é a própria sobrevivência. Foi sobretudo para poder levar adiante seu projeto de uma ditadura personalista que Fidel ofereceu seus serviços a Moscou. "Desde o ataque de Moncada, ele começou a dizer a seus colegas que a revolução deveria ter apenas um líder", escreveu o americano Brian Latell no livro After Fidel (Depois de Fidel).


Roberto Schmidt/AFP
Adalberto Roque/AFP
Cubanos festejam o afastamento de Fidel em Miami, nos Estados Unidos (à esq.). À direita, Raúl Castro, o primeiro-irmão e o número 1 na linha de sucessão: ditadura em família

Em abril de 1959, Fidel esteve nos Estados Unidos, onde foi bem recebido pelo vice-presidente, Richard Nixon, mas não gostou do modo com que os americanos insistiam em eleições livres em Cuba. De volta à ilha, deu início aos fuzilamentos sumários e, em dezembro de 1961, declarou-se comunista. A economia planificada foi um desastre imediato. O racionamento de alimentos, em vigor até hoje, foi instaurado antes do fim do ano. Por meio século, a ilha socialista dependeu de benfeitores externos para impedir o naufrágio de sua economia e quase se afogou depois do colapso do comunismo na União Soviética. Hoje, segura-se nos petrodólares enviados pelo venezuelano Hugo Chávez.

Fidel tem um inquestionável dom para a farsa. Dono de grande talento oratório e de uma memória excepcional, ele é capaz de discursar por horas sem cansar seus ouvintes. O país pode desmoronar à sua volta, seu povo pode estar sobrevivendo de migalhas, ele continua a discursar sobre as vitórias e conquistas do regime comunista. A farda verde despojada de medalhas e outros adornos militares é um lembrete eterno do revolucionário que ele foi. O antiamericanismo é um elemento-chave na personalidade que ele criou para si próprio, a de Davi contra o imperialismo ianque. Esse papel teve ressonância em quase todos os movimentos de esquerda na América Latina e no resto do mundo. Para Fidel, a oposição aos Estados Unidos não era apenas uma questão ideológica, mas de simples sobrevivência. Não poderia pôr em prática seu plano de poder pessoal absoluto se os Estados Unidos – tão perto e tão poderosos – tivessem a menor influência na ilha. Tentativas de assassinato, a invasão na Baía dos Porcos e as campanhas para isolar Fidel – tudo isso acabou virando peça de propaganda para o regime castrista. O embargo comercial americano só ajudou Fidel a convencer a população da vitalidade de ter um governante que "resiste ao imperialismo". "Ele é um ator que criou um personagem para si próprio e construiu um país de mentira para os cubanos", disse a VEJA a socióloga cubana Ana Faya, da Fundação Canadense para as Américas, em Ottawa.

Os bastidores do poder em Cuba são tão nebulosos quanto foram os do Kremlin. A imprensa cubana, diante da doença de Fidel e da troca de comando, limita-se a publicar mensagens de pronto restabelecimento enviadas ao comandante. É o tipo de controle rígido da informação que alguns amigos de Fidel tentam implantar no Brasil. Há duas formas de agir depois da morte de um ditador. A primeira é a transição para a democracia. Foi o que aconteceu depois da morte do ditador espanhol Francisco Franco e depois da queda de Augusto Pinochet, no Chile. Fidel sempre se recusou a fazer concessões ideológicas, mesmo que elas fossem urgentes para amenizar as agruras econômicas da ilha. Por isso, o que se tem em Cuba é uma sucessão, não uma transição para algo melhor. Vários cenários são possíveis na Cuba pós-Fidel. A queda abrupta do regime, do jeito que ocorreu na Europa Oriental, é a menos provável. A repressão policial cubana eliminou qualquer possibilidade de oposição interna. Os dissidentes estão na cadeia ou, a maioria, no exílio. Uma invasão de anticastristas apoiados pelos Estados Unidos parece fora de moda. Mais factível a curto prazo é a continuidade do governo comunista sob o comando de Raúl Castro ou de um colegiado (um comitê de seis pessoas foi formado na sexta-feira para tomar conta da sucessão). Nos últimos anos, o Exército cubano se converteu no maior empresário de Cuba, com interesses em todas as áreas da economia. Foram preparativos, dizem, para o primeiro-irmão colocar em prática o projeto de adotar o modelo chinês. Ou seja, alguma abertura econômica sem abrir mão do poder do Partido Comunista. Pode funcionar – mas só por algum tempo.

"FIDEL SE MURIÓ"

Há décadas os cubanos fazem piadas com a morte de Fidel Castro, a quem chamam, às escondidas, de "o comediante-em-chefe". Aqui, algumas delas

1 "Qual seria o melhor lugar para enterrar Fidel?", pergunta a professora a seus alunos. "Na Praça Vermelha, junto a Lenin", diz Roberto. "Na França, ao lado do túmulo de Napoleão", diz Maria.

"No Santo Sepulcro, junto a Jesus Cristo", diz Juan."Não, aí não", responde a professora."Vai lá que ele resolva ressuscitar no terceiro dia!"

 

2 Fidel Castro está morrendo e chama seu irmão Raúl. "Raúl, estou preocupado com o futuro do nosso povo. Você acha que eles vão seguir você como novo líder?"

"Claro, Fidel, nunca duvide disso."

"E se eles não te seguirem?"

"Se isso não acontecer, prometo que eles vão seguir você."

 

3 Fidel e Bush encontram-se no inferno. Bush, preocupado com a situação dos Estados Unidos após sua partida, pede ao diabo para usar o telefone. O presidente americano fala por dois minutos e paga 3 milhões de dólares. Fidel também quis saber como andava Cuba. Depois de três horas ao telefone, Fidel pergunta ao diabo quanto lhe deve. "São 35 centavos", diz o diabo. Espantado, Fidel pergunta por que a ligação para Cuba era tão barata. O diabo responde: "De inferno a inferno, a chamada é local".

 

4 Fidel morre e vai para o céu. Como não estava na lista, São Pedro manda-o para o inferno.

O diabo o recebe e diz: "Olá, Fidel, estávamos esperando você. Aqui você se sentirá em casa". Fidel responde: "Obrigado, Satanás, mas estive no céu antes e lá deixei minhas malas". O diabo diz a Fidel para não se preocupar, pois enviará dois diabinhos para pegar a bagagem. Os diabinhos chegam ao céu, mas encontram as portas fechadas. Decidem pular o portão e pegar as malas assim mesmo. Dois anjinhos assistem a tudo, inconformados. Um diz ao outro: "Não faz nem dez minutos que Fidel está no inferno e já temos refugiados".

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