Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 05, 2006

VEJA Em algum lugar do passado


Em algum lugar do passado

A pobreza milenar continua no campo;
a modernidade esvaziou aldeias, trouxe
poluição e disputas por terras. O milagre
chinês tem de aproximar 800 milhões
de uma vida melhor


Antonio Ribeiro


Antonio Ribeiro
A ALDEIA SEM JOVENS
Sob o olhar de Mao Tsé-tung, o agricultor Li Wan Jin (de perfil, cabelos grisalhos) joga mahjong no armazém de uma aldeia da zona rural: "Os jovens vão para a cidade ganhar dinheiro para ajudar as famílias que não tiram mais o sustento da lavoura. Isto aqui lembra os tempos da Longa Marcha: quem tinha braços e pernas fortes foi embora"

Na história da raça humana, a criação de riquezas descreve uma curva equivalente à trajetória de um Jumbo em decolagem. O início é lento, laborioso, rente ao solo até ganhar velocidade e rumar para o alto, impulsionado por confluências benignas. Durante as duas últimas décadas, o espetacular crescimento econômico da China está traçando uma linha ascendente mais parecida com a de um foguete do que com a de um Jumbão. Lá vai o foguete do progresso chinês. Por enquanto, ele deixa a ver navios cerca de 800 milhões de habitantes da zona rural. Ou seja, seis em cada dez chineses não estão a bordo do expresso do futuro. Longe dos cenários dignos de ficção científica das metrópoles chinesas às margens do Pacífico, a pobreza domina a planície aluvial, as cadeias de montanhas e o além delas, o Gobi, deserto maior e mais quente a cada virada de estação climática.

É uma área continental, descrita a VEJA como "a imensa favela do meu país" por Qin Lui, especialista em história agrária da China e professor das universidades de Pequim e Harvard. Nenhuma nação moderna prosperou de modo sustentado deixando para trás, a comer poeira, a maioria de seu povo. A China não será exceção. Esse é hoje o continental dilema do espetacular fenômeno chinês. A geração de riquezas na cidade não está ajudando a erradicar a milenar pobreza do campo chinês. Em alguns casos está criando um quadro ainda mais iníquo. Os chineses do campo são cidadãos de segunda classe. O governo os mantém assim, deliberadamente podando seus parcos direitos, de modo a controlá-los melhor. O temor de uma explosão social no campo é hoje a preocupação central do governo – e, como tudo no gigantesco país, um problema com potenciais repercussões mundiais.

Li Wan Jin, 65 anos, pertence a esse mundo lunar, fora do resplandecente universo econômico chinês. Um oitavo da população do planeta está empenhado em retirar de uma área do tamanho do Centro-Oeste brasileiro pouco mais de 1 dólar por dia. Um formigueiro humano. No cerrado brasileiro, cada sete habitantes dispõem do espaço de 1 quilômetro quadrado. Na zona rural chinesa, 590 pares de braços se debruçam sobre o mesmo quilômetro quadrado para arrancar seu sustento da terra. Essa equação produz tensão e desesperança. Para que houvesse um mínimo de equilíbrio, o campo chinês deveria ter produtividade 84 vezes maior que a do cerrado brasileiro. Ocorre justamente o contrário. Enquanto a tecnologia e a mecanização fizeram do cerrado a região agrícola mais produtiva do mundo, o chinês continua puxando arado.


Fotos Antonio Ribeiro
MORTE; ESPERANÇA
Procissão funerária leva as cinzas de mineiro que morreu de câncer no estômago – o terceiro caso em um mês, na região carvoeira de águas contaminadas. Abaixo, Du Zhen Lei faz um intervalo no trabalho com o triciclo primitivo usado como trator e garante: "Meu filho não será camponês, vai estudar informática na cidade". Do que ganha, 20% vão para o pagamento da mensalidade escolar. A aspiração é coletiva: a educação dos filhos encabeça a lista de despesas dos moradores do campo

Li Wan Jin é um dos milhões de chineses para quem doença grave significa insolvência ou morte – não há seguro-saúde nem aposentadoria no campo. Ele tem 65 anos, gosta de jogar mahjong e mora numa área onde os jovens são raridade, atraídos pela promessa das cidades. Sua plantação é pouco maior que um campo de futebol. Ali a família cultiva cada palmo e, muitas vezes, aduba o solo com os próprios dejetos. Consegue se sustentar, mas vive sob o medo de perder tudo. A terra pertence ao Estado e muda de destinação sempre que surge um empreendimento imobiliário ou a necessidade de criação de uma zona industrial. A ordem vem de cima. A execução é brutal e inquestionável. O burocrata local cumpre a diretiva, se preciso com a ajuda do Exército. Os Li Wan Jin somem do mapa local. Dependendo da indenização, compram um apartamentozinho na cidade, trampolim real ou imaginário para uma vida melhor. Quando dão azar, somam-se à pobreza urbana.

No início dos anos 80, o líder comunista chinês Deng Xiaoping, nanico com visão de gigante, mandou fracionar as ineficientes comunas agrícolas, transformando-as em quinhões familiares. O trabalhador rural foi autorizado a vender seus produtos a preços de mercado. A renda no campo quadruplicou. A máxima de Deng era não mais se importar com a cor do gato, mas com a destreza do bichano em pegar os ratos. No ano passado, enquanto o gato da roça agarrou seu rato mirrado, as garras do felino urbano capturaram três de um só golpe. A renda per capita rural não saiu dos 400 dólares por ano. O crescente dinamismo urbano gerou riquezas, e a renda hoje nas cidades está em torno de 1 300 dólares. A tendência da desigualdade de ganhos é aumentar, tanto pela aceleração da produção de riqueza urbana quanto pela depauperação crescente da "grande favela" rural chinesa.


Fotos Antonio Ribeiro
PESCARIA EM ÁGUAS TURVAS
Expulsas das cidades, indústrias poluentes encontram abrigo na zona rural, onde têm maior poder de pressão sobre as autoridades locais. A urbanização também avança. O pasto de ovelhas de Li Yi Yue logo terá novo vizinho: um conjunto residencial para empregados da empresa petrolífera chinesa. Camponeses se revoltaram ao saber que manda-chuvas locais levaram parte da indenização. "Chegou uma tropa de soldados distribuindo sopapos", contou um comerciante local. Não se falou mais no assunto

Sem o fragor do recrutamento forçado dos camponeses liderados por Mao, o início da epopéia sangrenta genitora da República Popular da China, 400 milhões de chineses – mais que o dobro da população brasileira – migraram do campo para as cidades, onde há fartura de empregos. Foi o maior movimento populacional pacífico da história. Centenas de milhões ainda são como Du Zhen Lei, 43 anos. Ele ficou para trás, mas tem planos definidos: "Meu filho não será camponês, ele vai estudar informática na cidade", diz, com os olhos fixos no horizonte. O êxodo rural só não se transforma em estouro de boiada porque a China ainda é uma ditadura comunista. O grilhão administrativo no caso chama-se sistema hukou. Por tal sistema, todo chinês deve residir e trabalhar onde nasceu. A mudança exige permissão do mandarim de plantão. Quem viola a regra se arrisca a sofrer punições severas, e a mais óbvia e dolorosa delas é a perda da terra. Mas arriscar é da natureza do homem. Estima-se entre 150 e 200 milhões o número de migrantes "ilegais" nas cidades chinesas. Empregados nas cidades, os ilegais cuidam de mandar dinheiro para a família no campo. No ano passado, os migrantes enviaram um total de 45 bilhões de dólares aos parentes na zona rural. Isso equivale a 52 dólares para cada um, quase um 13º salário, dinheiro que vai quebrar muitos galhos. É pouco? Sim. Mas corresponde a toda a ajuda oficial do governo chinês para o campo em 2006. De olho nas remessas dos ilegais, onze das 23 províncias chinesas começam, gradualmente, a relaxar a restrição do ir-e-vir.

Quando não é o campo que sonha com a cidade, é esta que avança sobre aquele. Li Yi Yue, 58 anos, e suas ovelhas logo terão novos vizinhos. Adjacente ao seu pastinho de capim ralo está sendo erguido, em ritmo frenético, um conjunto de apartamentos com vasta área de lazer para os empregados da China National Petroleum. A empresa negociou a compra da área com a administração municipal de Zhuozhou. Os 1 000 camponeses deslocados ganharam uma indenização de 342 dólares por acre, mas ficaram furiosos quando descobriram que os chefetes locais retiveram parte do dinheiro com a justificativa de "previsão de gastos com urbanização". Os mais destemidos tentaram fazer barricadas para impedir a chegada do comboio de britadeiras que daria início às obras. Em vão. Na sala privada de um restaurante, entre um gole e outro da sopa fumegante, um comerciante local de 31 anos, nome reservado a pedido, conta a VEJA a cena a que assistiu. "Às 10 horas da manhã, uma tropa de soldados enfezados chegou distribuindo sopapos. Levou presa uma dezena de camponeses. Na calada da mesma noite, os soldados foram de porta em porta no distrito de Zhaoge. Prenderam o resto, cujas famílias, além de terem perdido a terra, tiveram os móveis da casa e os utensílios de cozinha quebrados." Não se fala mais nisso em Zhuozhou.

A contenda ali não é a investida do mal (o progresso) sobre o bem (o miserável mas milenarmente sustentável modo de vida rural). No fundo tem-se a noção de que a chegada do progresso à zona rural vai melhorar a vida de todos. Mas essas coisas não ocorrem sem que genuínos e dolorosos dramas pessoais se desenrolem. Um vale da Califórnia, nos Estados Unidos, antes coberto de milharais, hoje abriga o epicentro da criatividade tecnológica mundial e o melhor índice de qualidade de vida do planeta. O chinês do campo anseia pelo progresso há séculos. Inveja os compatriotas da cidade que já o usufruem. Vive, porém, submetido às vontades do comunista de plantão, que desafia até o poder central. Um exemplo: o mandarim rural paga ao camponês menos de 5% do valor real da terra que interessa a projetos residenciais ou industriais e negocia o bem espoliado com base no valor de mercado. O agricultor não tem a quem recorrer, mas pode espernear – no ano passado, houve 87 000 "distúrbios públicos" decorrentes dos confiscos de terra, segundo dados do governo, famosamente obcecado por estatísticas. A medida mais transformadora seria dar títulos de propriedade aos camponeses. "A transferência da posse das moradias do Estado para os habitantes das cidades foi um dos maiores sucessos do novo modelo econômico chinês, não há razão para ser diferente no campo", diz o economista Li Shi, autor do estudo que lançou o debate sobre a desigualdade de renda na China.

Numa breve pausa no intenso tráfego de caminhões transportando carvão mineral, a poeira se dissipa na estrada de Mentougou. Surge um colorido cortejo. É o enterro de Li Jing Cang, 57 anos. A terceira morte de câncer de estômago, em um mês, no distrito de Kun Ying Gu. "A água contaminada está nos matando, e Li Jing Cang interrompeu a quimioterapia porque não conseguia pagar o tratamento", diz um amigo do morto. As indústrias pesadas depositam, diariamente, toneladas de material tóxico em rios, canais e reservatórios de água da região. Forçadas a deixar as cidades, as indústrias poluidoras vão se instalar no campo, onde os mandarins locais, desesperados para gerar empregos e aumentar a receita de impostos, abrandam a legislação ambiental, quando não fazem vista grossa, em troca de propina felpuda, à degradação. O retrato de quem um dia der títulos de posse, privatizar e modernizar o campo tem grande chance de ir para a parede dos bares rurais como o líder da próxima grande revolução chinesa.

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