Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 05, 2006

VEJA Comunistas de carteirinha ..e cartão de crédito


Comunistas de carteirinha...
...e cartão de crédito

O partido comunista que recriou as diferenças
de classes nem liga para as contradições e seus
militantes são focados: querem subir na vida


Monica Weinberg

 

Paulo Vitale
BRAD PITT E BIG MAC
Os universitários Wang Fang e Jiang Po são membros típicos do PCCh: ela pendurou em seu quarto fotos de Brad Pitt; ele festeja o McDonald's. Ambos almejam emprego no setor público. "Ser do partido certamente ajuda", diz Jiang Po

O que é que tem nome de partido comunista, métodos de partido comunista, máquina de partido comunista, mas não é partido comunista? É, claro, o Partido Comunista Chinês (PCCh). Maior organização política do planeta, incentivador do mais acelerado surto de desenvolvimento econômico da história, promotor-chefe do capitalismo sem democracia, inventor do coquetel Marx-com-MBA, gigante todo-poderoso que se dá ao trabalho de perseguir cruelmente uns sujeitos que fazem ginástica em praça pública (a seita Falun Gong) e mandar tirar de cartaz um filme cujas obscuras discussões religiosas a imensa maioria dos chineses nem sequer entende (O Código Da Vinci), foco da mais deslavada corrupção e ao mesmo tempo fiscalizador inclemente que manda prender ou fuzilar corruptos – a lista de contradições pode continuar por um bom pedaço. Em qualquer outro lugar do mundo isso causaria no mínimo uma profunda crise existencial. Na China? É perfeitamente possível atravessar uma rua entre Mercedes buzinando, cruzar com pedestres que vestem Armani, tomar um café no Starbuck's mais próximo (conforme o bairro, tem um a cada 500 metros) e discutir o último plano qüinqüenal do governo comunista – provavelmente para identificar onde estão as boas oportunidades de negócios. Oficialmente, a China não vive mais sob uma ditadura do proletariado (ufa!), mas o partido ainda sustenta que o país está numa etapa de transição para uma sociedade socialista – como previsto na teoria que Karl Marx lançou mais de um século atrás, hoje enterrada na noite dos tempos. A impressão é que essa máquina de 70,8 milhões de filiados, fundada há 85 anos e há 57 no comando do país, sofre de um caso de dupla personalidade. Sofre, aliás, é força de expressão. É como se cada uma das personalidades seguisse contente e feliz por seu caminho. Basta uma conversa com Liang Yanshun, diretor da Escola Central do PCCh, formadora de quadros do partido e espécie de guardiã da teoria comunista, para comprovar essa tese. "Fui ao Japão e morri de inveja da pujança deles", assume Liang.

 

Paulo Vitale

O BOM PARTIDO
Wang Zhihe planeja fazer carreira executiva impulsionado pelo Partido Comunista: ele foi nomeado representante de uma estatal pertencente à prefeitura de Pequim na joint venture com a brasileira Embraco. "Se der certo, posso virar presidente da estatal. É cargo de alta remuneração e prestígio", diz

"No papel, o partido ainda parece ser o mesmo do passado, mas a realidade é dramaticamente diferente", escreveu Kishore Mahbubani, um especialista em políticas públicas da vizinha Cingapura – uma espécie de China ao contrário: é minúscula e anticomunista, mas tem o mesmo vezo autoritário. "Depois de mais de um século de desgoverno, a China é comandada atualmente pela melhor classe dirigente que já teve em muitas gerações." Classe dirigente, por sinal, tratada em parte com o que o mundo tem de melhor em matéria de ensino. Recentemente, o governo chinês anunciou que vai patrocinar a viagem de uma nova leva de filiados de alto escalão para estudar técnicas de administração pública em universidades americanas e européias. Eles enchem a boca para anunciar no idioma original o nome dessas instituições. "Rá-var-di, the best, the best!", diz Guo Xiangyuan, do Ministério da Educação.

Estabilidade e prosperidade são a dupla mágica que permite ao partido não só permanecer no comando de um gigantesco quebra-cabeça de 1,3 bilhão de habitantes, mas conseguir altos índices de aprovação, na medida em que podem ser detectados, e um bom índice de renovação de quadros, mesmo com uma folha corrida que combina retórica ultrapassada, abomináveis erros históricos, práticas ditatoriais, nepotismo e corrupção. Uma das razões para isso está cravada na essência do que hoje move a sociedade chinesa: um aguçado senso de pragmatismo aliado à idéia de progresso individual. Há pessoas que ambicionam pregar um broche do Partido Comunista na camisa (o boné estilo Mao Tsé-tung está definitivamente fora de moda) porque isso pode lhes trazer benefícios concretos. E elas não são poucas. Uma filiação facilita a busca por emprego no pródigo funcionalismo público do país – são 105,3 milhões de nomes na folha de pagamento! –, sinônimo de estabilidade e salários razoáveis. É esse o motivo para a adesão em massa de estudantes (734 000 só no ano passado), como o casal de universitários Wang Fang, 27 anos, e Jiang Po, 29. Wang Fang preferiu pregar na parede de seu quarto um pôster de Brad Pitt à foto de Mao Tsé-tung. Jiang Po lembra a chegada do sanduíche Big Mac à China como um dos benefícios proporcionados à sua vida pelo partido. Não há nenhuma sombra de ideologia comunista no discurso dos dois estudantes. Como tantos outros, eles confessam que karaokê é mais divertido do que uma reunião do PCCh. "Estar nos quadros do partido pode garantir nosso futuro na China", resume o rapaz.

Outra leva recente de filiados vem da classe empresarial. Até 1978, os empresários eram barrados por ser vistos como a expressão do pensamento burguês. Hoje, eles são bem-vindos. Dos 400 homens mais ricos do país, 20% são filiados ao partido. Sob as asas oficiais, estreitam as relações com o poder, sem as quais qualquer negócio na China se torna praticamente inviável. Nada menos que 81% dos presidentes das empresas são nomeados pelo partido. Vários filiados sonham fazer vingar uma carreira executiva por meio dessa poderosa engrenagem política, caso de Wang Zhihe, de 61 anos. Ele é vice-gerente-geral da joint venture da qual participa a brasileira Embraco. "Se eu tiver um bom desempenho nessa função, minha posição na empresa melhora", diz Zhihe.

 

Antonio RIbeiro

NADA ENQUADRADO
Liang Yanshun é diretor da Escola Central do partido, de onde saem quadros do alto escalão: depois de uma viagem ao Japão – em geral detestado pelo passado de invasões –, ele confessa ter ficado fascinado com o país. Agora, Liang está com passagem marcada para os Estados Unidos, mas diz não saber o que trazer de lá: "É difícil para um chinês achar alguma novidade. Tudo é made in China, não é?"

O discurso oficial costuma ser repetido por jovens e velhos na sociedade chinesa sem nenhuma sombra de ceticismo. Desde as vilanias do imperialismo americano, quando convém ao governo cutucar os Estados Unidos, até o papel de herói da pátria, apesar de "alguns erros bem-intencionados", atribuído a Mao Tsé-tung pelo partido. De repente, relampejam manifestações de ódio, tanto pelo que o partido fez no passado (as perseguições e outras barbaridades políticas) quanto pelo que está fazendo no presente (corrupção, aumento das desigualdades sociais). São, aparentemente, minoritárias. "Não parece possível existir um sistema eleitoral funcional que envolva 1,3 bilhão de pessoas. Mas isso não é problema: a população está bem representada pela classe política", afirma Liang Yanshun, da Escola Central do PCCh, sob as perspectivas de democratização. "A China vai ter de caminhar em direção à democracia, para evitar ser destruída pela corrupção", discorda o especialista Kishore Mahbubani. "Mas vai demorar um pouco – talvez um século, ou mais."

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