Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, agosto 01, 2006

A tragédia que se temia Editorial O Estado de S. Paulo



Editorial
O Estado de S. Paulo
1/8/2006

Quando a opinião pública internacional, reconhecendo o seu direito ao revide, criticou, quase por unanimidade, o que considerou uma reação desproporcional de Israel à agressão do Hezbollah, que consistiu na incursão ao seu território, com a morte de 3 soldados e o seqüestro de 2 outros, foi por temer o inevitável sempre que um país bombardeia outro maciçamente e indistintamente. O inevitável aconteceu no 19º dia da ofensiva israelense ao Líbano. Um único ataque a uma edificação do povoado de Qana, onde se abrigavam moradores locais sem dinheiro nem coragem para fugir dali, como tinham sido advertidos a fazer, fez mais vítimas do que todos os foguetes Katiusha que caíram no norte de Israel desde o início dessa nova conflagração entre judeus e árabes. As armas que mataram cerca de 60 libaneses, entre os quais 37 crianças, escondidos em um porão - no mesmo vilarejo onde, há 10 anos, 102 civis pereceram no bombardeio de um acampamento de refugiados - infligiram a Israel sua terceira derrota na tentativa de erradicar o Hezbollah do sul do Líbano.

A primeira é militar. Às exortações por um cessar-fogo assim que as hostilidades começaram, ou para a abertura de corredores humanitários no país atacado, o governo israelense fez saber que precisava de duas semanas para terminar o serviço. Anteontem, quando as pressões americanas finalmente levaram um relutante primeiro-ministro Ehud Olmert a aceder a uma trégua de 48 horas, Israel continuava a mencionar o mesmo prazo, atestando a cruel futilidade das operações que arrasaram o Líbano. Claramente, ao engajar a Força Aérea e o Exército israelenses na mais prolongada sucessão de batalhas desde a Guerra do Yom Kippur, em 1973, o Hezbollah, com suas táticas de guerrilha, se mostrou um inimigo capaz de suportar por mais tempo do que supunham os estrategistas israelenses o poderio da maior máquina militar do Oriente Médio. Idêntica capacidade de resistir e revidar obrigou Israel em 2000 a se retirar unilateralmente do país que invadira havia 18 anos.

A segunda derrota é política. Israel conseguiu a proeza de unir em torno do Hezbollah, o movimento radical xiita do qual amplos setores sociais e políticos libaneses até então queriam distância, todas as facções etno-religiosas do país - muçulmanos sunitas e xiitas, cristãos maronitas e drusos, principalmente. No mundo islâmico, o Hezbollah é saudado como o incontrastável campeão da causa palestina. Os regimes autoritários pró-americanos, como a Arábia Saudita, a Jordânia e o Egito, que haviam condenado pela primeira vez em público o "aventureirismo" do Hezbollah, mudaram de tom radicalmente ou se calaram, enquanto crescem as demandas para que os dois últimos no mínimo retirem os seus embaixadores de Tel-Aviv.

O terceiro revés de Israel, naturalmente, é moral. A sua indiferença às agruras dos libaneses, culminando com a atrocidade do último domingo, fez ruir a legitimidade que o Estado judeu invocava para a represália ao Hezbollah, na condição de país atacado. Aos olhos do mundo, nem o imperativo da autodefesa israelense justifica o que muitos consideram um crime de guerra. Mais danificada do que a imagem de Israel só mesmo - de novo - a dos Estados Unidos. A conduta de Washington tem sido simplesmente patética. Ecoando a retórica do governo Bush para a invasão do Iraque, a secretária de Estado Condoleezza Rice falava no "novo Oriente Médio" que poderia nascer da presente crise, antes de ir tocar Brahms em Kuala Lumpur, na Malásia, ao mesmo tempo que o seu país, milimetricamente alinhado com Israel, bloqueava no Conselho de Segurança qualquer resolução por um cessar-fogo imediato no Líbano.

Não haverá nenhum cessar-fogo "sustentável", como diz Condoleezza, muito menos novo Oriente Médio, apenas o mesmo de sempre, encharcado de horrores, enquanto a superpotência mundial se comportar exclusivamente como aliada incondicional de Israel e enquanto não surgir em Israel o que lhe falta desde o assassínio do primeiro-ministro Yitzhak Rabin, em 1995. Desde então, o país teve governos negociando a paz. Mas não um líder com a convicção de que Israel só terá para si - a começar da paz - o que os palestinos também puderem ter, mediante um acordo que os radicais de ambos os lados abominam. O Líbano é só a vítima da vez.

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