Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, agosto 01, 2006

Crendices e falácias Xico Graziano



artigo -
O Estado de S. Paulo
1/8/2006

Agosto, no interior paulista, significava mês de cachorro louco. Trata-se, evidentemente, de uma crendice. Para espantar os cães raivosos as crianças seguiam para a escola rural, a pé, apavoradas, vestindo seus uniformes do avesso. Coisa de antigamente.

São comuns, na roça, histórias fantasmagóricas. Saci-pererê, boitatá, mula-sem-cabeça... O mundo rural, isolado e distante e, por que não dizer, inculto, cultivava suas crenças ilógicas para sossegar a alma. Mistura de religiosidade com resquício de naturalismo primitivo. Não fazia mal a ninguém.

Nas práticas agrícolas, época de pouca tecnologia, a Lua definia períodos de plantio e colheita. Cortar bambu somente se permitia na fase minguante, para não carunchar. Para vingar forte a muda de bananeira deveria ser plantada de ponta-cabeça. Virou brincadeira de criança.

A maioria das crenças rurais acabou distante, perdida no trajeto da civilização brasileira. O folclore tenta resgatar essa riqueza cultural, valorizando as origens do povo. Lembrar do passado significa cultivar o futuro.

Curioso é perceber que, nessa transição do mundo mágico para a racionalidade, rumo à modernidade, certas crendices rurais permaneceram vivas, como se verdades científicas fossem. Um caso exemplar afeta o eucalipto.

Por mais que a ciência moderna comprove que a árvore é generosa, sua fama de má continua assombrando por aí. Dizem que espanta a chuva, seca o solo, que nada nasce ao seu redor nem vinga na terra por ela outrora ocupada. Nada disso é verdade, mas continua a conversa fiada.

É bem verdade, óbvio, que uma plantação de eucaliptos exige muita água para crescer. Os estudos florestais, todavia, comprovam que o consumo de água pela árvore não difere muito do consumo de outras espécies florestais. Mais ainda, considerando a quantidade de madeira produzida pela água consumida, o eucalipto mostra-se mais eficiente, quer dizer, mais econômico que árvores nativas. A diferença é que ele cresce rápido.

A inquietude remanescente por causa das florestas plantadas com eucalipto se explica por uma razão não-científica. Quem afirma é o professor Walter Lima, da Esalq-USP, que elaborou sua tese de doutorado sobre o tema. E nesse ardil mora o perigo.

Afinal, as crendices populares são ingênuas, mas os mitos podem ser utilizados no jogo político da sociedade. Quando ocorre essa manipulação, transformam-se em falácias, servindo ao proselitismo político e, no extremo, à guerra ideológica. Foi o que ocorreu com o pobre do eucalipto. Um ecologismo da pior espécie, disfarçado de social, tacha as plantações florestais de "desertos verdes". Um absurdo agronômico.

Falácia maior, entretanto, ataca hoje a economia e a sociologia rural, qual doença contagiosa. Trata-se da alegada oposição entre a agricultura familiar e os agronegócios. O embate ideológico gerou um falso antagonismo, teórico e prático, palco da disputa pelo poder entre dois ministérios da República. É inacreditável.

Argumenta-se que os produtores familiares, pequenos, geram empregos e protegem o mercado interno; os empresários rurais, por sua vez, grandes, são anti-sociais e visam apenas os dólares da exportação. A falácia imputa virtude aos pequenos e vício aos grandes. Familiares são do bem, patronais, do mal.

A injustificável distinção entre familiar e agronegócio significa uma verdadeira heresia teórica, sem amparo na realidade agrária. Nos Estados Unidos, a maioria dos agricultores é familiar e opera em larga escala, contando com a ajuda da tecnologia. O padrão norte-americano se reproduz atualmente na fronteira agrícola de Mato Grosso, particularmente nas culturas da soja e do algodão. A gestão é familiar, porém altamente empresarial.

No Brasil, graças à ideologia barata, o conceito de familiar passou a ser sinônimo de pequeno agricultor. Mais ainda, distante do mercado e isolado das cadeias produtivas. Pior, pobre e indefeso. Virou a coqueluche da esquerda boboca. Uma verdadeira tragédia do pensamento.

Ora, familiar tem que ver com gestão, não com tamanho. E agronegócio exige vinculação ao mercado. Somente estão fora do agronegócio os agricultores de subsistência, como o são grande parte dos assentados de reforma agrária. Estes cultivam e criam para autoconsumo. Nessa condição, excluídos do mercado, se encontra também metade dos agricultores tradicionais do País, principalmente no Nordeste. Fazê-los progredir, integrando-os às cadeias produtivas, deve ser o miolo da política pública.

Quando se analisam as estatísticas agrárias, verifica-se que os pequenos agricultores são importantes na produção de alimentos, como o feijão. O cereal que segue para abastecer as metrópoles, todavia, advém de produtores comerciais, boa tecnologia, gestão empresarial. No tamanho são pequenos, na qualidade são enormes.

Milhares de produtores do Paraná, organizados em cooperativas, produzem soja para exportação. Cafeicultores mineiros, pequenos em área, colhem o melhor café do Brasil. Fruticultores paulistas, altamente tecnificados, dão show de competência. Todos são familiares e, simultaneamente, expoentes do agronegócio.

Dizem que manga comida com leite faz mal. Não procede. Espalhada pelo patrão, a mentira procurava impedir o consumo de leite pelos escravos. Segregar o agricultor familiar, à semelhança da crendice do leite, significa criar uma distinção enganosa. Atrapalha, não ajuda a enfrentar os dilemas da economia agrária.

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