Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 19, 2006

Roberto Pompeu de Toledo Nova ordem no céu

VEJA


Que é um planeta? Eis uma discussão
que abre incertezas situadas fora
dos limites da ciência

Um ser distante e gelado, pequeno para sua espécie, enigmático, batizado com o nome do deus romano que impera sobre os infernos, vive dias decisivos – o planeta Plutão. Planeta? Essa é a questão. Merece ele continuar ostentando esse nome, espécie de título de nobreza até agora reservado a poucos, entre os numerosos corpos que habitam o sistema solar? Ou deve ser rebaixado, expulso da categoria como vil intruso, cassado como um deputado mensaleiro? A questão desperta paixões. Sempre que se cogita destituir Plutão da condição de planeta, e isso tem sido feito com relativa freqüência nos últimos anos, uma horda de fãs levanta-se em sua defesa. A reação do outro lado pode ser implacável como a do New York Times, que num editorial na semana passada arrasou com o (ainda) nono integrante da família planetária. "Plutão nunca mereceu ser chamado de planeta", acusou o jornal. "Ele é muito menor do que se pensou de início, menor na verdade do que a nossa lua. Sua órbita é mais elíptica do que a dos outros planetas e se inclina num plano diferente, e seu corpo rochoso e gelado mais parece com o núcleo de um cometa."

O assunto deve ser resolvido nesta semana. Um comitê de cientistas da União Astronômica Internacional está reunido em Praga para tomar uma decisão. A tendência é Plutão ser ratificado como planeta. Com isso, outros três corpos devem imediatamente ser promovidos à mesma condição, outros onze estarão em posição de bater à porta do grupo e muitos outros poderão juntar-se a ele no futuro. Ou seja, a divisão de elite do sistema solar sofrerá uma banalização. E não se pense que isso terá reflexos só nos livros didáticos. Planetas remetem a mitos (não é por acaso que são batizados com nomes mitológicos). Habitam um lugar na mente que tem a ver com a imaginação, com o mistério, com a perplexidade diante dos espaços infinitos. Contar quantos são não é como contar laranjas num cesto. Não é apenas de ciência que se trata.

Com a discussão sobre quem é planeta e quem não é, abre-se diante de nós uma nova frente de incertezas. É ou não é para se sentir inseguro? O canto do universo tão bem-acabadinho, tão resolvido que conhecemos desde a escola está em xeque. Há desigualdades flagrantes no sistema solar, e essa é a origem dos problemas. Dele fazem parte tanto gigantes como Júpiter, de volume 1.500 vezes maior do que o terrestre, e Saturno, abraçado em seu anel, belo e majestoso como um pavão do universo, quanto a Terra, de tamanho modesto, mas que comprovadamente permite a vida, tanto assim que cá estamos (ou não estamos? – eis a insegurança a nublar-nos o entendimento). Para completar, vagam pelo mesmo espaço esses párias do sistema que são os asteróides, e a palavra pária vem a propósito porque o que se vislumbra no céu não deixa de ser também uma divisão de classes, o que torna mais delicada a escolha do partido a tomar. Somos a favor de um clube fechado de planetas, onde nem Plutão caiba? É uma posição sem dúvida elitista. Concordamos, ao contrário, em abrir as porteiras a outros corpos? Congratulemo-nos com nossa índole democrática, mas sem esquecer do risco de favorecer a instabilidade do sistema, e talvez mesmo lhe trazer um pouco de desordem, com a admissão de todo um baixo clero do espaço.

A questão que a reunião de Praga tem diante de si é uma definição de planeta. A palavra é uma noção vaga. Na tentativa de conferir-lhe algum rigor científico, a proposta é que sejam considerados planetas os corpos redondos que giram em torno de uma estrela, não importando o tamanho nem a consistência. Se é assim, o pequeno Ceres, conhecido desde 1801, situado entre Marte e Júpiter, e até agora tido como asteróide, será promovido a planeta; Plutão continua planeta; e Caronte, antes considerado seu satélite, também vira planeta. Também se eleva a essa condição um corpo situado além de Plutão, descoberto no ano passado, a que seu descobridor, o americano Mike Brown, deu o nome provisório de Xena. Foi essa descoberta que conferiu urgência à discussão em curso. Xena é maior que Plutão; ou é também considerado um planeta ou Plutão deixa de sê-lo. Nos mesmos confins do sistema solar existem, embora menores, outros corpos já descobertos que preenchem os requisitos da definição proposta e, segundo se crê, muitos outros a descobrir.

Machado de Assis termina Quincas Borba afirmando que o Cruzeiro do Sul "está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos homens". A recíproca não é verdadeira. As gentes aqui da Terra se sentem assaz perto para tentar impor e reimpor uma ordem ao universo. Rebaixado ou confirmado como planeta, Plutão não mudará seu penoso curso, que leva 250 dos nossos anos para completar uma volta em torno do Sol. Xena continuará sua vida sombria de bola de gelo. Mas a definição do que eles são ou deixam de ser tem o potencial de provocar uma certa bagunça nas fantasias, nas crenças, nos símbolos, nos sonhos, nos medos, nos risos e nas lágrimas dos homens.

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