Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 19, 2006

Passado nazista

VEJA

Ex-reserva moral da Alemanha, o escritor
Günter Grass revela, ao promover um novo
livro de memórias, como serviu a Hitler

Na semana passada, a Alemanha ficou em choque com uma revelação do escritor Günter Grass. Às vésperas do lançamento de suas memórias, Descascando a Cebola, Grass admitiu ter feito parte da Wafen SS – o braço de combate da SS, organização militar de elite que também conduziu o genocídio nos campos de concentração. A revelação chocou não tanto por seu conteúdo, mas por ter vindo de quem veio. Militante da esquerda, Grass foi um crítico do silêncio sobre os crimes alemães no imediato pós-guerra e até se manifestou contra a reunificação da Alemanha, em 1990, argumentando que o país seria uma ameaça à Europa. Por que o homem que propunha um acerto de contas irrestrito com o passado demorou tanto para reconhecer os próprios vínculos com o nazismo? Em suas declarações públicas, o prêmio Nobel de Literatura de 1999 deu a pouco convincente justificativa de que já não podia viver com esse peso. Seus críticos têm aventado uma motivação mais comezinha (e plausível): marketing. No rastro da polêmica, o lançamento da obra, programado para o início de setembro, foi adiantado para a semana passada. Em dois dias, segundo a editora Steidl, foram comercializados 130.000 exemplares de uma tiragem inicial de 150.000.

Não surpreende que um homem da geração de Grass – nascido em 1927, em Gdansk, na Polônia, cidade então conhecida pelo nome alemão de Danzig – tenha servido ao nazismo. Ele já admitira ter feito parte da Juventude Hitlerista (o que era obrigatório: o filósofo Jürgen Habermas e o papa Bento XVI também pertenceram à organização). A partir daí, porém, o autor de O Tambor apresentava uma versão editada da própria história. Sua biografia oficial omitia as duas letras tenebrosas: SS. "Durante décadas, neguei-me a admitir essas duas letras. O que eu aceitara com tanto orgulho na juventude quis calar depois da guerra, por culpa", diz o escritor em Descascando a Cebola. Uma parte da SS foi responsável por administrar o extermínio sistemático dos judeus da Europa. Grass – segundo ele afirma – integrou-se a uma divisão de tanques da Wafen SS e não sabia dos crimes cometidos nos campos de concentração. Ele não serviu no Exército regular alemão. Combateu com as insígnias da organização militar que com mais fidelidade abraçou o ideário racista do nazismo. E o fez de forma voluntária. O recruta Günter juntou-se com genuíno entusiasmo ao que então considerava uma "unidade de elite". "Não foi só uma tolice juvenil", admite hoje.

Em 1985, quando o presidente americano Ronald Reagan e o chanceler alemão Helmut Kohl visitaram um cemitério militar no qual estavam enterrados oficiais da SS, Grass criticou acerbamente essa atitude. Essas críticas hoje se esvaziaram, junto com a autoridade moral do autor. "Não entendo como alguém pode ter se arvorado em consciência da nação por sessenta anos e só agora admitir o próprio envolvimento com o nazismo", atacou o historiador Joachim Fest, reputado biógrafo de Adolf Hitler. A hipocrisia de Grass se torna ainda mais escandalosa pelo fato de ele ter escolhido o lançamento de um livro como ocasião para o acerto de contas com o passado sujo. Um jornalista da revista alemã Der Spiegel definiu essa atitude com precisão ferina: "Grass orquestrou sua confissão com uma habilidade que nem Madonna teria para lançar um novo CD".

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