Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 19, 2006

Materialismo dialético

VEJA

Doença grave de Fidel abre a discussão
entre os cubanos sobre como recuperar
os bens roubados pelos comunistas


Antonio Ribeiro, de Paris

Cuban Television/AP
Par de vasos: Chávez visita o enfermo Fidel



O ditador Fidel Castro é persistente em seus esforços para garantir o legado de atraso econômico e político em Cuba. No dia do aniversário de 80 anos de Fidel, no domingo passado, depois de duas semanas sem que os cubanos tivessem uma confirmação confiável de que ele havia sobrevivido a uma cirurgia no intestino, a imprensa oficial divulgou fotos do comandante en jefe se recuperando. A televisão estatal mostrou, no dia seguinte, um vídeo em que Fidel aparece conversando com o presidente venezuelano Hugo Chávez, seu fiel comparsa, e com seu irmão Raúl Castro, provisoriamente à frente do governo cubano. Fidel mandou avisar à população cubana para estar preparada para uma "notícia adversa", dando a entender que pode não ter condições de saúde para voltar a governar. "Com a divulgação das imagens, a propaganda comunista quis mostrar que Fidel terá disposição para acompanhar o processo de transferência definitiva de poder para Raúl, garantindo, assim, que a ditadura castrista sobreviva à sua morte", disse a VEJA o americano Brian Latell, autor do livro Depois de Fidel.

Sempre que Fidel flerta com a morte, a questão da sucessão de poder é acompanhada por outra: como reverter o maior confisco de propriedades privadas das Américas, estimado em mais de 100 bilhões de dólares. Recuperar os bens desapropriados pelo regime de Castro será complicado mesmo na hipótese de uma transição democrática. Benjamin Menendez Toraño, proprietário majoritário da H.Upmann, lembra-se do dia 15 de setembro de 1960 como se fosse ontem. Às 17h30, uma milícia castrista ocupou a maior fábrica de charutos de Havana, onde são enrolados os puros da marca Montecristo. Desde então, o negócio, tal qual milhares de outros na ilha, está nas mãos do Estado. O dia mais triste de Menendez, no entanto, aconteceu só dois meses mais tarde, quando ele teve de fugir com a família, uma mala e 7 dólares no bolso para o exílio em Miami. Hoje, com 70 anos, Menendez continua no ramo. "Se a saúde permitir, estarei de volta no primeiro vôo a uma Cuba libre", disse ele a VEJA pelo telefone celular, de uma lavoura de tabaco na República Dominicana.

Por "Cuba libre", o tabaqueiro não se refere à bebida preparada com rum e Coca-Cola, mas à democracia com economia de mercado. A evidência histórica mostra que, sem uma boa dose de respeito à propriedade privada, um país não atrai investimentos e não alcança a prosperidade. A rede espanhola de hotéis Sol Meliá, por exemplo, só pode operar na ilha junto com a ditadura cubana, ainda assim em propriedades confiscadas. Em seus 8.345 quartos hospedou-se um terço dos 2,32 milhões de turistas que visitaram a ilha caribenha no ano passado. Em 1996, quando o grupo hoteleiro lançou suas ações na Bolsa de Nova York, deixou os hotéis cubanos fora da lista de suas operações mundiais. Em maio de 2002, representantes da Sol Meliá propuseram um leasing mensal de 7 milhões de dólares para os herdeiros da família Sanchez-Hill. Os hoteleiros queriam a anuência dos proprietários, no exílio, para operar quatro hotéis num terreno em frente à Praia Guardalavaca, de Holguín. A proposta foi recusada na presença de William H. Taft IV, conselheiro jurídico do Departamento de Estado. A lei americana prevê sanções a empresas que invistam em bens americanos confiscados em Cuba. Quem cai nessa categoria é considerado "traficante" pela legislação. Executivos da Sherritt International, mineradora canadense, da mexicana Domos, empresa de telecomunicações, e do grupo BM, produtor de sucos israelense, já tiveram seus vistos americanos anulados devido às atividades de suas empresas em Cuba.

A suspensão do embargo comercial americano a Cuba depende, por lei, do acerto do confisco. As gavetas do Departamento de Justiça em Washington guardam queixas de 5.013 cidadãos e 898 empresas americanas com bens confiscados pelo regime comunista cubano, o que representa menos de 5% da economia da ilha pré-Fidel. Em valores atuais, a indenização seria de cerca de 80 bilhões de dólares. O confisco total do patrimônio de cubanos, no entanto, não está mapeado. Entre 1959 e 1973, período em que saiu do país a maioria dos exilados com alguma posse, 457.600 cubanos cruzaram os 145 quilômetros de mar que separam a ilha da costa dos Estados Unidos. "Talvez vejamos seguidas encarnações de juntas militares em Havana que se recusam a negociar a restituição dos bens confiscados, mas, cedo ou tarde, esse dia chegará", disse a VEJA Nicolás Gutiérrez, advogado de Miami, nos Estados Unidos, que representa os interesses de 200 proprietários exilados. Metade é de fazendeiros ou empresários. Gutiérrez reivindica a restituição de bens equivalentes a 26 bilhões de dólares.

José Gotia/AP
O hermanito Raúl Castro, sucessor de Fidel: ditadura hereditária

Quando a hora chegar, os cubanos poderão se inspirar no exemplo dos países do antigo bloco soviético na Europa do Leste e Central, que criaram programas para restituir e compensar os bens confiscados pelos nazistas e comunistas. O mais satisfatório deles, implementado pelo presidente Vaclav Havel, da ex-Checoslováquia, resultou na devolução rápida de um patrimônio equivalente a 10 bilhões de dólares para os donos legítimos – um terço do território do país foi restituído. Lá, a restituição foi condicionada à residência obrigatória no país. Essa foi a forma encontrada para estimular o interesse pela reconstrução, por meio de investimentos nas indústrias obsoletas e melhorias nas residências depauperadas. Na Letônia, moradores de imóveis confiscados ganharam legitimidade de posse por meio de um aluguel de longo prazo que alimenta um fundo destinado a compensar os antigos donos. Foram estabelecidos prazos para formular as queixas, mas a solução dos processos continua em curso. Esse é o caso da Polônia, onde uma família trava uma batalha feroz para reaver o terreno da embaixada americana em Varsóvia. Em maio deste ano, o governo da Romênia devolveu a Dominic von Habsburg o fabuloso "Castelo do Drácula", ponto turístico cravado no topo de uma colina na Transilvânia. O Ministério da Restituição de Patrimônios romeno foi criado junto com uma série de medidas para viabilizar a candidatura do país à União Européia.

No caso de Cuba, há um complicador: trata-se de um país endividado, sem reservas e com uma economia amarrada com barbante, ou seja, não teria dinheiro para indenizar os confiscados. Economistas que estudaram a questão sugerem a restituição dos bens e, onde não for possível – imóveis habitados, por exemplo –, a compensação com títulos e ações de empresas privatizadas. Um estudo da Babun Group Consulting identificou 1.490 estatais cubanas com potencial de compra. Se todas fossem vendidas, o resultado não passaria dos 40 bilhões de dólares. Na década de 80, por exemplo, os russos cogitaram trocar as tubulações do sistema de fornecimento de água em Havana, mas desistiram ao perceber que a obra custaria 15 bilhões de dólares. De lá para cá, salvo alguma benfeitoria nos arredores dos hotéis, a situação só piorou. A ironia da história pode transformar os americanos na principal fonte de ajuda econômica a um eventual governo democrático em Cuba. Nesse caso, algumas indenizações nem precisariam atravessar o estreito da Flórida. A base naval americana de Guantánamo, em Cuba, seria relembrada em uma negociação sobre o confisco. Desde 1898, quando os marines americanos desembarcaram na ilha durante a guerra hispano-americana, ela é ocupada pelos Estados Unidos. Um tratado de 1903 estipula um aluguel anual pela área equivalente a pouco mais de 4.000 dólares. A quantia é depositada anualmente, sem atraso. Fidel sempre se recusou a tocar no dinheiro. Nesse caso particular, ele compartilha da mesma opinião dos compatriotas de quem tomou os bens: roubar propriedade alheia é feio.

Arquivo do blog