Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 20, 2006

Miriam Leitão Papéis de Machado

O GLOBO
Fui visitar José Mindlin, mas cheguei um pouco cedo, e ele estava trabalhando na revisão de um texto. Ele me apontou um monte de livros na sua incrível biblioteca e disse: “Vá se divertindo aí com esses livros, que ainda não estão catalogados.” O primeiro que peguei não consegui largar. Nele havia o testamento de Machado de Assis e a informação: todo o dinheiro que ele tinha estava aplicado em dívida pública.

Nosso escritor clássico mais célebre, de tão gracioso e exato texto, tão genial na construção de personagens que ainda nos intrigam, como Capitu, não tinha maiores bens além de algumas apólices da dívida pública brasileira, que deixou para a sobrinha-neta Laura.

O livro era o catálogo de uma exposição do Ministério da Educação e Saúde.

Dois ministérios em um.

Imagine a economia de gastos públicos. A exposição foi em 1939 e era uma mistura de informações pessoais e profissionais do escritor.

O testamento estava manuscrito.

“Eu, Joaquim Maria Machado de Assis, morador à Rua Cosme Velho número 18, querendo fazer o meu testamento, efetivamente o faço.” Gostei. Há tantas coisas que eu vivo querendo fazer e efetivamente não faço.

Seguiam-se as informações sobre quem ele era, com quem se casou, pedido para ser enterrado do lado da sua amada Carolina. Disse que já havia feito uma partilha de bens amigável, com sua cunhada, na época em que sua esposa tinha morrido. Aquele era o segundo testamento; no primeiro, havia deixado tudo para a mulher.

“Declaro que sou possuidor de doze apólices gerais da dívida pública do valor de um conto de réis cada uma e do juro de 5% ao ano, as quais se encontram depositadas no London and Brazilian Bank Limited. Possuo também algum dinheiro depositado na conta corrente do mesmo banco e novas quantias recolhidas à Caixa Econômica em caderneta no14.304 (segunda série).” Não sei se ele fez um bom negócio. Marcelo Paiva Abreu certamente sabe, professor, economista e historiador com quem vou saciar a curiosidade, dia desses, mas hoje conto essa longa história para dividir os pensamentos que a leitura me provocou.

Hoje, cem anos depois de o testamento ter sido escrito, a campanha eleitoral traz de volta a acusação de que os juros são pagos aos especuladores. Um pouco antes de começar a campanha eleitoral de 2002, antes, portanto, da “Carta aos Brasileiros”, o PT propôs um plebiscito contra a dívida.

A primeira pergunta era sobre se a divida externa deveria ser paga. A terceira pergunta era: “Devemos pagar os juros da dívida interna aos especuladores? ” Hoje a dívida externa está diminuindo. Candidato que não quiser pagá-la tem que se eleger logo, porque hoje a dívida externa pública e privada, segundo o Banco Central, pode ser paga com seis meses de exportação. Só a dívida pública externa, excluindo a do setor privado, há quatro anos era 23% do PIB; hoje é 4,4%.

Já a dívida interna continua alta, mesmo após oito anos de extraordinário esforço de superávit primário.

Está nos mesmos 50% do PIB. É alta, é cara, é curta. A cada tremor em qualquer país do mundo os financiadores da dívida pública brasileira exigem papéis pósfixados e de liquidez imediata.

Ou seja, querem correr da dívida a qualquer momento que tenham chance ou se vejam em perigo.

Quem realmente financia a dívida não são os bancos, os especuladores, mas, sim, as empresas, pessoas, seguradoras, fundos de pensão e quaisquer outros aplicadores, públicos ou privados, que tenham dinheiro poupado nos fundos lastreados por títulos públicos.

O resultado de tantos anos de juros tão altos, de tantas restrições fiscais sem benefício aparente, de tanta demagogia nas campanhas eleitorais, é esse: para a maioria dos brasileiros, mesmo aqueles que têm o dinheiro aplicado em papéis do governo, quem se beneficia dos juros são os outros, os especuladores.

É tão mais fácil resumir o problema a um vilão, ainda mais quando ele é difuso, a personificação do mal, que o discurso político que envereda por esse caminho conquista votos. A cada campanha aparecem os que acham que existem soluções mágicas para acabar com esses exploradores do povo brasileiro.

Do testamento de Machado de Assis até hoje já houve muitos calotes e mudanças de regras que reduziram o patrimônio de quem acreditou, como ele, que o porto mais seguro para o dinheiro era aplicar em títulos do Tesouro brasileiro.

O Brasil ficou numa situação estranha. Os poupadores não confiam muito na dívida. Se confiassem aceitariam juros menores, como o nosso escritor aceitou: 5% ao ano. Hoje, se os juros caírem para 5%, muitos aplicadores vão procurar outra fonte de remuneração, sem dúvida. Certos políticos, em cada temporada eleitoral, lembram aos poupadores que a dívida é um estorvo, um obstáculo ao crescimento, aos investimentos públicos, aos bons serviços do estado. Os juros são mesmo excessivamente altos.

Um país normal emite títulos do seu Tesouro que são comprados por aplicadores de longo prazo. Como Machado de Assis, que ali aplicou seus contos de réis e os deixou para sua herdeira universal. Não está ainda estabilizado economicamente um país em que seus financiadores recebem juros de 15% ao ano e recusariam a remuneração aceita pelo Bruxo do Cosme Velho. Não está estabilizado um país em que a maior parte da dívida está composta por papéis de curto prazo e nos quais os juros que os remuneram serão os do dia do vencimento, os chamados pós-fixados. Há quanto tempo o Brasil não é um país normal? Foi pensando nisso que terminei a leitura do testamento de Machado de Assis.

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