O GLOBO
Quem é que manda aqui? Tem governo? Com quem é que a gente fala? Em que outro país, para lidar com o poder público, é quase sempre indispensável contratar um despachante, ou não se consegue nada? Em que outro país o povo tem medo da polícia, e os criminosos não? Em que outro país praticamente o governo de um estado inteiro (ou província, condado ou município) é posto na cadeia e, entre 25 deputados, apenas um parece não ter cometido irregularidades ou crimes graves? Em que outro país circulam, por todas as vias, de paredes de botecos à Internet, listas de candidatos criminosos confessos e envolvidos em todo tipo de falcatrua? Em que outro país as autoridades ou representantes de empresas de serviço público — ou qualquer outra pessoa, pensando bem — precisam da autorização de chefes de quadrilhas para entrar em determinadas áreas das cidades? Tive que resistir e não ceder à tentação de escrever hoje somente com perguntas desse tipo. Não creio que fosse muito difícil encher várias páginas de jornal com elas, mas todo mundo as conhece e não vale a pena ficar repetindo-as. O que vale a pena é refletir sobre isso. E a primeira reflexão que inevitavelmente se oferece é a de que o Estado brasileiro já não exerce sua soberania mesmo internamente, não detém o monopólio da violência, nem mesmo controla inteiramente certos setores da administração pública. Sua legitimidade se encontra mais seriamente ameaçada do que talvez se pense, notadamente através da desmoralização de uma instituição vital à democracia, que é o Parlamento.
Ou seja, como eu já disse aqui e vários outros também já disseram em outras oportunidades, a sensação é de que o país está à deriva, de que não há governo, ninguém está cuidando da casa, ninguém respeita mais nada ou ninguém. E os jornalistas se viram confrontados com uma novidade aterrorizante: agora são seqüestráveis e podem, Deus nos proteja, vir a protagonizar tragédias no futuro.
Mas não é só por ser jornalista que me alarmo. Claro que também me alarmo por todo mundo, porque, se isso continuar, como é bem possível que continue, as únicas vítimas não vão ser jornalistas. As vítimas vão ser qualquer um, e não duvido nada de que até a escalação de um time possa ser resolvida nessa base, quando um bandido qualquer, ardoroso admirador ou padrinho de um jogador, seqüestrar uma dona de casa comum, amarrá-la e ameaçar gravar o escudo de seu time com ferro em brasa na bochecha dela, na presença dos senhores telespectadores, ou matar, como têm feito em Bagdá, com qualquer um que peguem e se enquadre na ampla categoria de exterminável, ou seja, praticamente quem quer que dê azar de estar por perto ou ser antipatizado.
Já vivemos na época dos blindados e dos seguranças. Daqui a pouco, o chefe de família consciente vai procurar incluir o item “seguranças” no seu orçamento doméstico, assim como já inclui o plano de saúde e a escola dos meninos, eis que está cansado de saber que, se for esperar que seus impostos lhe rendam assistência médica e educação, está ferrado. Os mais modestos terão seguranças em horas, dias ou missões especiais. Os em melhor situação terão seguranças para toda a família, todo o tempo. Daqui a pouco, as empresas de segurança farão seguros como as empresas de saúde, e um desses planos provavelmente terá o nome de Total Security — Gold Class, não porque não seja de uma empresa genuinamente nacional, mas porque, como sabemos, tudo fica mais chique em inglês. Melhor do que esse só o milionário Total Security — Platinum Class, plano tão sofisticado que os seguranças têm seus próprios seguranças. Mais uma lição de pioneirismo do Brasil e o surgimento de um mercado de trabalho incalculável, eis que os empregos indiretos gerados pelo setor de segurança deverão ser suficientes para criar todos os empregos que o presidente diz que cria.
Mas a verdadeira lição que o Brasil está dando é em outra área. No mundo de hoje, há a necessidade de se reverem conceitos que, de tão enraizados, viraram uma segunda natureza para os homens. A realidade de hoje é outra, o poder do Estado pode ser desafiado de mil maneiras. Então — essa é a nossa genialidade, fruto da nossa permanente criatividade, pela qual somos tão renomados — vamos começar acabando com o Estado.
Mas, como? Extinguindo toda a máquina pública, impossibilitando sinecuras, mamatas e roubalheiras e também lançando ao desemprego todo o funcionalismo? Não, nada disso. O Estado continua aí, mas só que de outra forma. O Estado será somente um dos governos a que nos submeteremos (e submeterão a ele também, em muitos casos). Quer dizer, criamos um novo sistema político cujo nome pode ser, com sentido renovado, aquele que historiadores já usaram para designar o feudalismo: poliarquia.
Ou seja, reconhecemos a existência de vários “governos” ou “Estados” e vamos nos virando.
A poliarquia, apesar de marchar a passos largos, ainda está na sua infância, de maneira que temos que nos costumar um pouco e desenvolver a sensibilidade, para melhor nos orientarmos.
Se, por exemplo, não adianta nada se queixar à polícia, procure justiça no morro mais próximo, onde certamente serviços desse tipo serão no futuro estendidos ao grande público.
Afinal, tem que haver vantagens na poliarquia — e a principal delas é que, ao contrário de agora, teremos sempre um governo a nosso alcance.
Claro, aparecerá quem alegue que isso é a declaração de um verdadeiro salve-se-quem-puder no país. Lógico que é, salve-se quem puder mesmo.
Entrevista:O Estado inteligente
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