Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 06, 2006

Miriam Leitão Macacos me mordam- Jornal O Globo




Levei muitos anos para entender toda a dimensão de uma notícia que sempre esteve ao meu lado. A luta de um conterrâneo para proteger mata e macacos de sua fazenda. Parecia uma história local, de interesse dos amigos e parentes, e é uma história global. Hoje a Fazenda Montes Claros, em Caratinga, é o mais importante núcleo de preservação do maior macaco das Américas.

A história que eu conto hoje nas páginas 50 e 52 de Ciência e Vida é o cumprimento de uma velha dívida que eu tenho com o jornalismo. Cresci ouvindo as histórias de Feliciano Miguel Abdala, sua mata e seus macacos. Soube de ouvir meu pai contando as proezas do amigo desde a infância. Quando voltava à cidade, já jornalista, meu pai continuava pontuando as etapas da história da luta solitária de um homem pelo meio ambiente, da chegada dos pesquisadores e do interesse de grandes primatólogos do mundo.

O tempo me ensinou a grandeza da história, principalmente quando comparo com o que aconteceu à volta daquele oásis.

A Mata Atlântica foi impiedosamente destruída no século passado. Enquanto isso, dos anos 1940 até o ano 2000, quando morreu, o cafeicultor Feliciano manteve sua mata de pé. Depois dele, sua família. Ao preservá-la, garantiram a sobrevivência do maior grupo de muriquis.

Eles já foram 400 mil em toda a extensão da Mata Atlântica. Há entre eles e esse bioma um casamento indissolúvel. Só lá eles podem sobreviver, e por isso hoje existem no máximo uns mil indivíduos, mais de um terço deles na Fazenda Montes Claros. Lá eles até aumentaram de número nas duas últimas décadas em que têm sido mais estudados. Os muriquis são dispersores de sementes da mata e, por isso, ela também precisa desses habitantes.

O que aconteceu na Mata Atlântica nos 500 anos de nossa História não pode nem sequer ser chamado de exploração econômica. Foi apenas destruição, diz o jornalista Marcos Sá Corrêa, especialista em meio ambiente.

— O que aconteceu com a Mata Atlântica foi uma tragédia econômica. O Brasil nem explorou a riqueza da mata. Ele queimou, tratou como coisa sem valor. É o que Warren Dean (brasilianista que escreveu “A ferro e fogo”) conta de forma magistral — diz.

A história da destruição da Mata Atlântica mostra a quanta pressão tinha que resistir quem quisesse preservar no Brasil entre os anos 1940 e 2000.

— O começo do século XX foi o boom da destruição na Mata Atlântica em todo o Brasil — conta Miriam Prochnow, da Apremavi, que acaba de coordenar a publicação de um livro que é inventário da situação atual da mata.

A exploração do café em alguns lugares, como no Vale do Paraíba, por exemplo, foi feita quando não havia estrada, então os produtores queimavam a mata para plantar o café nas cinzas. Era tratada como adubo.

Houve incentivo fiscal no Brasil para tirar a mata e plantar eucalipto até a década de 80.

Até uma década atrás, o Código Florestal não permitia a dedução da mata da área de uma fazenda para cálculo do índice de produtividade do Incra.

Caratinga, onde Feliciano manteve de pé os 900 hectares da mata onde vivem os muriquis, fica perto de onde se instalaram siderúrgicas nos anos 1960.

Ou seja, para manter um fragmento da mata em pé, era preciso resistir à pressão de todos os lados, fechar os olhos às oportunidades econômicas, recusar os incentivos.

— As empresas eram incentivadas a destruir. Iniciativas como a do senhor Abdala, naquela época, eram raríssimas. Eu vi áreas que foram preservadas porque o madeireiro queria esperar a valorização. Se houvesse mais gente como ele, a história da Mata Atlântica seria diferente — diz Miriam Prochnow.

Parece incrível, mas o projeto de lei da Mata Atlântica, que protegeria o que resta do bioma, 14 anos depois ainda não é lei. Ela foi considerada patrimônio nacional em 1988, mas isso ainda não foi regulamentado. Só restam 7% da mata.

O que me encanta na história é o inusitado de tudo, o que me obriga a contá-la é o espanto com a constatação de que eu demorei tanto tempo a perceber a notícia debaixo do meu nariz. São várias notícias numa mesma história, porque tem também o avanço da ciência que aconteceu lá sob o comando de Karen Strier, que hoje é citação obrigatória nos estudos sobre os primatas no mundo.

Fui revê-los outro dia. Não é fácil encontrá-los, mas a sagacidade de Antonio Bragança, o presidente da Estação Biológica de Caratinga, levou-nos a uma figueira onde eles estavam dormindo depois de garantido o alimento diário. Eles claramente se exibiam: pulavam de uma árvore à outra, as mães carregando seus filhotes nas costas desciam e subiam as árvores, dependurando-se no enorme rabo, que parece um terceiro braço de tão ágil e importante no movimento.

Na última vez que fui lá, no mês passado, não consegui vê-los, porque eles estavam numa parte da mata mais remota, que tem o significativo nome de Fim do Mundo. Mas andei pela mata aconchegante, linda e cheirosa, que foi guardada pelo meu conterrâneo. Andei por lá guiada pelo jovem Roberto, que nasceu e sempre viveu na fazenda e cujo sonho é estudar biologia para visitar a teoria de tudo o que já aprendeu na prática. Roberto explica o poder de cada planta, a especificidade de cada espécie, reconhece o dono de cada som e se orgulha do trabalho.

— Eu sou só um guia, mas gosto de explicar para as crianças e os visitantes que vêm aqui o que eu sei. Eu sinto que faço parte de uma coisa maior.

E faz. Ajuda a preservar um fragmento de uma preciosidade rara e frágil.

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