Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 06, 2006

Alguma alegria aí? JOÃO UBALDO RIBEIRO - Jornal O Globo



Há dias venho amanhecendo com um sorriso meio parvo estampado na cara e a disposição de escrever um texto leve e, com um pouco de sorte, engraçado. Fui ler aqui o que venho escrevendo e só vejo, tomara que com certo exagero, pensamentos soturnos ou desanimados, observações meio cínicas, previsões quase lúgubres. Durante a Copa, tentei aliviar a mão, mas, com aquele time e mais a morte do Bussunda, ficou difícil. Havia dias em que era alegria de palhaço mesmo, uma forçaçãozinha de barra profissional, para tentar não passar ao leitor mais chateações do que as que já o perseguem, ainda mais quando ele não tem nada a ver com elas.

E, agora de volta há tantos dias, pego esta coluna impressa no jornal e quase sinto um hálito de desânimo a desesperança. Será isto mesmo? Será que não temos mais para onde olhar, que não há mais razão de alegria, não se pode mais brincar sem sentir culpa? Tento reavivar o sorriso já se esmaecendo e recorro a meu sortido estoque de filosofia de almanaque para me convencer de que não se deve levar esta vida ridícula demasiadamente a sério. Besteira, tudo passa, até o sistema solar vai passar num piscar de olhos cósmico, temos é que curtir tão indolormente quanto possível esta esquisita experiência da Natureza com a espécie humana, que para mim não vai dar em boa coisa, pelo menos durante muito tempo ainda.

Pois é, mais fácil dito que feito. Vou aos jornais do dia, a primeira coisa que vejo é um libanês segurando seu filhinho morto, uma linda criança retirada dos escombros criados por bombardeios. Não estou tomando partido, não quero entrar em discussões freqüentemente exaltadas, passionais e irracionais, só quero dizer que a primeira coisa que vi foi a foto de um pai carregando no colo seu filhinho morto. Era uma criancinha morta e podia não ser no Líbano, podia ter sido em tantas partes do mundo onde esse tipo de coisa vive acontecendo de tantas formas, inclusive entre nós, sempre monstruosamente.

O ódio, meu Deus, será mesmo esse sentimento o que mais motiva a ação do homem? Há ódio em toda parte, buscam-se novos ódios, criam-se antagonistas onde não existem e nossa espécie se mata como se mata desde o começo dos tempos, só que com maior eficiência. Aqui, como é tantas vezes visível no noticiário, não se assalta mais apenas para roubar. Assalta-se com ódio, com vontade de matar, humilhar, afrontar. E alguma coisa, século atrás de século, poderá apagar o ódio entre os antagonistas no Oriente Médio? Nasce-se odiando, morre-se odiando, procria-se para odiar. Difícil, difícil manter o sorriso, tudo bem quanto ao profissionalismo, mas escritor também é gente.

Dentro dos jornais, mais mortes, mais ameaças, mais medos em todas as frentes. O crime organizado é apresentado como uma das máquinas mais bem montadas e eficientes do mundo, já em contatos sérios com políticos e governantes em geral. Já se “ideologiza” essa nova ordem. Não demora, talvez, a criação de um partido político que defenda abertamente essa nova ordem. Alguns de vocês, talvez muitos, pensam que estou delirando, mas não creio estar.

Na opinião de vocês, é mesmo ainda possível limpar o Brasil de tanta prática suja e secularmente criminosa e imoral? Não está tudo encardida e pegajosamente entranhado em grupos de interesses, costumes, cultura, grupos financeiros e quadrilhas diversas? Não se tem a impressão, pelo noticiário, de que se trata de uma metástase irreversível e incontrolável, pois não há setor da vida nacional em que não se descubram falcatruas de todos os gêneros e que não há nada mais a fazer? Não é verdade que qualquer um pode citar de memória vários ladrões confessos que estão por aí soltos, muitos desfrutando largamente do que roubaram, nunca devolveram e nunca vão devolver?

Aí querem que o povo vote “certo”. Vamos ver em que condições educacionais e econômicas está a grande maioria desse povo. Quem sair fazendo perguntas sobre a realidade nacional à maior parte dos estudantes universitários brasileiros vai com certeza tomar diversos sustos. Imaginem vocês os horizontes de quem nem compreende direito o que lhe falam os forasteiros ou os que usam belos termos, quem nunca leu nada, quem nunca viu nada, quem tem um vocabulário de umas duas ou três centenas de palavras, como tantos eleitores que conheço?

O grande eleitorado continua a ser massa de manobra, como sempre foi, de acordo com as circunstâncias de cada época. Para que lados vai ser manobrado, não sei, mas conheço o chamado “interior” e não posso subestimar o poder do programa de esmolas que o governo, apesar de desvios e das inevitáveis mutretas, vem conduzindo. Vale eleitoralmente muito. Assistencialismo combina com clientelismo que combina com paternalismo e tudo o que o pessoal bronco (mas esperto à sua maneira e, como qualquer um, não infenso à lei do menor esforço) espera: um salvador desses, que garanta sua sobrevivência tranqüila, na miséria a que está habituado. Até mesmo a cachacinha do “bolsista” está garantida mais do que nunca, posso assegurar a vocês e, depois de uma visitinha às minhas bases, em janeiro, vou ter certeza.

Então, algum motivo de alegria aí? Algum candidato os entusiasma? Temos alguma coisa a comemorar? Terão razão os que prevêem (eles existem, alguns bastante convictos) que Lula vai perder? E, se perder, fará alguma diferença? Alguém mais será nosso d. Sebastião, que tanto tarda em nos vir redimir? Alguma coisa fará diferença? Nós temos jeito? Ou o Brasil perdurará para sempre, na nossa própria opinião, como o país com o qual ou sem o qual o mundo permaneceria tal e qual? Agora que nem mais o país do futebol somos, talvez. Alguém se importa?

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