Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, agosto 18, 2006

Merval Pereira - Meias-verdades



O Globo
18/8/2006

A sensação de impotência que toma conta dos cidadãos, diante da impunidade que predomina nas relações políticas, volta e meia transforma-se em esperança de mudança concreta quando deputados como Fernando Gabeira e Raul Jungmann lideram a pressão que viabiliza a CPI dos Sanguessugas; ou quando o deputado Miro Teixeira encontra na própria Constituição o antídoto para impedir a posse de deputados envolvidos em corrupção. Ou ainda quando o senador Demóstenes Torres impede que uma pizza de grandes dimensões seja servida pelo senador João Alberto, que ensaiou arquivar os processos contra seus colegas acusados de sanguessugas, Ney Suassuna, Serys Slhessarenko e Magno Malta.

A pressão da sociedade está fazendo com que vários políticos envolvidos nos recentes escândalos desistam de se candidatar, mas muitos deles renunciaram, ou pretendem renunciar, para poder concorrer novamente, numa afronta à sociedade. Cabe agora aos procuradores regionais eleitorais atuar com firmeza para que esses corruptos, eventualmente eleitos, não assumam os mandatos.

O ministro Marco Aurélio de Mello, presidente do TSE e membro do Supremo, deu ontem uma indicação do que pode vir a ser uma tendência: afirmou que fatos que denigrem candidatos, mesmo que eles não tenham sido condenados pela Justiça, devem ser levados em conta pelo eleitor na hora de votar. É de se supor que ache que também a Justiça deve agir assim.

Aproveitando-se dessa crise institucional, muito além do espaço virtual da televisão, em que exibe um país "arrumadinho", o presidente Lula vai deixando antever nas entrelinhas o que realmente pensa sobre os escândalos de corrupção que assolam seu governo e, mais que isso, o que poderá vir a ser um cada vez mais provável segundo mandato presidencial. Quando lançou a idéia de uma Constituinte restrita para realizar uma reforma política, parecia querer apenas um instrumento para viabilizar uma reforma fundamental, mas delicada. De lá para cá, passou a extrapolar a reforma política tradicional, aproveitando-se da baixa popularidade dos políticos.

Colocou a imunidade parlamentar em discussão em discurso na Bahia, e até mesmo a duração de oito anos do mandato de senador. Lula voltou a fazer críticas generalizadas aos políticos, que, segundo ele, não farão uma reforma política "de verdade": "Poderão fazer muito arremedo em benefício deles próprios". Num momento em que a classe política está mergulhada em diversos escândalos, nada mais atraente para um candidato que esconde sua origem partidária na propaganda de televisão e rádio do que se distanciar dos parlamentares. Mas também nada mais perigoso.

Quando Lula diz, como no primeiro programa de propaganda oficial pela televisão, que "a crise ética que se abateu sobre todo o país é a crise de todo o sistema político", está falando uma meia-verdade. Ninguém usou tanto, e com tal profundidade, esse "sistema político" do que o seu próprio governo, com a compra direta, em dinheiro vivo, dos votos de deputados, conspurcando as votações da Câmara e desmoralizando a política representativa.

Sem falar no fato de que Lula foi eleito para se contrapor a esse "sistema político", e não para compactuar com os "300 picaretas" que identificara em ação no Congresso quando lá esteve como constituinte. Pela relação dos mensaleiros e dos sanguessugas, vê-se que Lula sabia bem do que estava falando, mas tratou de cooptar os "picaretas", em vez de neutralizá-los.

Quando Lula "revela" que demitiu os ex-ministros José Dirceu e Antonio Palocci, como a mostrar à audiência do "Jornal Nacional" que os punira, está mais uma vez dizendo meias-verdades. Os dois saíram "a pedidos", e mereceram elogios em suas despedidas. Os jornais de ontem trazem uma afirmação de Lula que mostra que ele não condena a atitude de seus ex-auxiliares. Lula disse que perdeu "bons companheiros" que estavam "muito apressados", querendo fazer "tudo para anteontem".

José Dirceu, que está sendo acusado pela Procuradoria Geral da República de chefe da "organização criminosa" que se montou dentro do Palácio do Planalto para garantir o poder ao PT, e Antonio Palocci, que quebrou ilegalmente o sigilo bancário de um caseiro que testemunhou que freqüentava uma casa de má reputação no Lago Sul de Brasília, eram apenas "apressados".

Recentemente, o presidente Lula elogiou muito Palocci em uma roda de conversa, chegando ao cúmulo de dizer que o que existe hoje é o Plano Palocci, já que o Plano Real, segundo ele, acabou no segundo governo de Fernando Henrique. Nessa conversa, Lula disse que Palocci só saíra do governo porque estava "sob uma pressão muito intensa", não descartando sua volta ao governo, caso se eleja deputado federal. Nenhuma crítica às ilegalidades praticadas, nenhuma queixa de traição.

Ao mesmo tempo em que esconde a estrela do PT, assim como os políticos escondem o broche que os identifica como parlamentares com receio da reação do populacho, o presidente Lula vai ajudando por baixo dos panos os mensaleiros e sanguessugas de seu partido e dos partidos aliados, colocando-os em seu palanque, numa afronta ao repúdio da sociedade.

Lula é capaz de tudo por um voto, até de usar em vão Seu santo nome, como fez no palanque com o bispo Crivella, para quem pediu votos ao governo do Rio de Janeiro em nome de Deus. Seu carisma pessoal, turbinado pelos milhões de reais que distribui prodigamente em programas assistencialistas, garante a impunidade de seus atos. O caso do empréstimo pessoal pago por seu amigo Paulo Okamotto é típico. Foram tantas as versões que meias-verdades diferentes revelaram uma mentira inteira.

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