Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 13, 2006

JOÃO UBALDO RIBEIRO Tudo dentro da normalidade

ESTADO

Devo ter tido o juízo afetado por aquela Copa estranha, porque, tanto tempo depois, permaneço numa sensação de irrealidade e dei para de vez em quando parar o que estou fazendo para querer saber onde estou, de que me trato, o que é tudo isso em torno. Tenho um psiquiatra de estimação, a competência encarnada, ao qual sou obrigado às vezes a recorrer, nestes momentos em que a Mãe Gentil nos deixa tão perplexos, confusos, descrentes e em crises de hilaridade demente. Decidi então marcar uma horinha com ele, porque, novamente, me atacou a Dúvida Cruel: não é o mundo que está maluco, sou eu. E, especialmente, não é o Brasil que está doido, sou eu, tendo alucinações e pensando em acontecimentos impossíveis.

Ele me recebeu com o ar compreensivo de quem está acostumado a lidar com malucos. Já conhece a maior parte das minhas (todas é impossível, ele mesmo disse) neuras e padecimentos psíquicos variados. Tanto assim que, mal me sentei, me deu um rápido olhar de avaliação.

– Surto cívico outra vez? – perguntou, cruzando os dedos.

– Como é que você sabe? Eu estou dando bandeira, saí com a camisa da Seleção sem reparar?

– Não, para quem não conhece você, não. Mas você está com sua cara de discurso. Da última vez em que você esteve aqui com essa cara, queria depor Bush. Eu lembro bem, você chegou a babar na camisa e xingou em inglês.

– Não tenho a menor lembrança disso, você diz isso para me convencer de que eu sou maluco mesmo. Todo psiquiatra não só é maluco, mas considera todo mundo maluco também.

– Não deixa de ser verdade, já discutimos isso várias vezes. Mas, se não é surto cívico, o que é, livro atrasado outra vez?

– Não me fale nesse livro! Você mesmo disse que não falaria mais nele porque eu entro em pânico.

– É verdade, desculpe. Mas, se não é surto cívico, nem livro... Sonhou outra vez com seu pai chamando você de analfabeto?

– Bem, sonhei, sempre sonho, isso não vale, é o trivial. Não, é outra coisa, eu acho que estou me dissociando da realidade. Você, por exemplo, que é informado, lê jornais, conversa, acha que estamos dentro da normalidade? Sem papo filosófico ou científico, no coloquial mesmo. Está tudo normal?

– Bem, imagino que sim, o noticiário de sempre...

– O noticiário de sempre? Você acha que esse negócio que está acontecendo em São Paulo é o noticiário de sempre?

– Cada vez mais é, não é? Esta é a terceira ou quarta onda de ataques? A quinta?

– Pois é, e você acha isso normal? Uma cidade como São Paulo?

– Bem, não seria normal, mas aqui é, está ficando, não vejo sinal de que vai mudar. Você leu sobre a novidade da política de segurança nacional?

– Que política de segurança nacional?

– Também não sei direito, às vezes dizem que existe, às vezes que não existe. De qualquer forma, vão fazer uma alteração na lei, para dar maior segurança ao cidadão.

– Isso é alguma gozação sua.

– Pode ser gozação, mas não é minha, é sério mesmo. Agora, para ajudar a segurança do cidadão, vai ser permitido o uso de sprays de pimenta e bastões de choques elétricos.

– Quer dizer que agora os assaltantes chegam armados até os dentes a seu apartamento e aí você diz "com licença, cavalheiros, antes uma cafungadinha de cortesia" e aí taca o spray de pimenta neles, dá uma lição inesquecível a eles e, o que é melhor, sem matar ninguém. Só falta saber se vai ser politicamente correto usar spray de pimenta num excluído.

– É, resta essa questão. Enquanto isso, praticamente o governo inteiro de um Estado foi preso, lá em Rondônia. Falam muito no PCC, no tal crime organizado do tráfico etc., mas não parece que é coisa para disfarçar o crime organizado que existe em praticamente todas as áreas de atividade, no Brasil?

– É, praticamente o governo inteiro foi preso. Já imaginou isso, um governo todo preso por roubalheira e bandidagem? Pois é, você só está me dando mais argumentos. Isso é normal, você continua achando que está tudo dentro da normalidade?

– Claro que não. Não é normal dentro dos padrões que nos disseram ser os certos. Mas todas essas coisas estão se mostrando cada vez mais normais. Então, já que voto não resolve, que criminoso não fica na cadeia, que nossos impostos vão pelo ralo, que todo mundo mete a mão em tudo o que pode, anormal acaba sendo nós acharmos isso anormal. Não é, é normal.

– E fica tudo por isso mesmo, não fazemos nada?

– O que eu posso eu faço.

– E o que é que você pode fazer por mim?

– O mesmo que meu psiquiatra faz por mim. Isso aqui você já tomou, vai lhe tirar a ansiedade numa boa, sem sonolência. Vou olhar sua ficha aqui e ver se não seria o caso de voltarmos ao antidepressivo. E também...

– Mas, rapaz, isso não seria uma fuga? Nesse caso não seria melhor sair do Brasil?

– Talvez – disse ele. – Mas para onde?

– Onde presta, não te aceitam; onde te aceitam, não presta, é verdade.

– Exatamente – disse ele. – Posso usar essa frase?


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