Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 19, 2006

Guerra de posições na revolução doce

ESTADO

Otaviano Canuto*

Tem-se hoje no Brasil uma convergência em torno da percepção de como seria conveniente a expansão não só do uso, mas também da produção de álcool como combustível de transporte no resto do mundo. Razões de segurança energética tornariam difícil a aposta mundial no álcool na hipótese de manter-se apenas um país como grande supridor.

Além disso, o realismo impõe levar em conta que a galvanização de interesses domésticos no exterior será um importante elemento para a difusão da "revolução doce", nome dado por alguns à experiência brasileira com o álcool combustível obtido da cana-de-açúcar. Afinal, o álcool combustível como commodity necessitará da definição de padrões internacionais para o produto, do aprofundamento dos mercados de derivativos existentes, bem como de redes de acesso aos usuários e outros fatores. O Brasil não tenderia a perder sua vantagem competitiva, tornando-se o provedor em última instância, além de ser fonte potencial de tecnologia e investimentos diretos.

A batalha por corações e mentes fora do País, contudo, está longe de ser ganha. Permitam-me nomear quatro mitos recorrentes que ainda exigem contra-ataque, no contexto da "guerra de posições" intelectuais - tomando emprestada a expressão do filósofo Gramsci - acerca da "revolução doce".

O primeiro é o mito de que todos os biocombustíveis têm baixa eficiência energética e uma contribuição limitada em termos de redução de emissões de carbono e outros aspectos ambientais, quando analisados a partir de seu ciclo completo de produção. O problema é que, no que diz respeito ao álcool, a profusa divulgação de textos científicos e jornalísticos continua centrada em sua obtenção a partir do milho nos EUA, onde há enorme uso de combustíveis fósseis (tratores, combustíveis nas usinas), fertilizantes, irrigação, etc.

No entanto a proporção de energia criada em relação àquela empregada no caso do álcool da cana-de-açúcar é de 8,3 vezes, em contraste com as estimativas que vão de 1,25 a 1,8 para o milho. Em média, obtém-se mais de 7 mil litros de álcool por hectare com a cana-de-açúcar no Brasil, bem acima dos 3,5 mil no caso do milho norte-americano. Além disso, os subprodutos da cana podem ser usados na geração de calor e energia, tornando o processo auto-suficiente senão fornecedor de energia para o resto da economia.

Outro mito é o de que o álcool combustível só continuará competitivo caso os preços do petróleo se mantenham nos patamares atuais e o preço internacional do açúcar - uso concorrente da cana - caia no futuro. Aí cabe realçar o aprendizado tecnológico brasileiro dos últimos anos na área e como vários especialistas apontam o limiar de competitividade do álcool hoje, em relação ao petróleo, sem subsídios, na faixa de preços do petróleo entre US$ 35 e US$ 45 o barril. Além disso, desde que a capacidade produtiva de cana-de-açúcar na economia internacional possa responder a estímulos de preços, altas nos preços do açúcar não serão riscos para a disponibilidade de cana para o álcool.

O terceiro mito é o de que apenas o Brasil pode ser capaz de produzir álcool de modo viável, em decorrência de especificidades de clima e solo, assim como dos enormes "custos de entrada" incorridos desde os anos 70. Pode-se, por outro lado, apontar certas vantagens para novos entrantes, tais como a possibilidade de adaptação de tecnologia já desenvolvida no Brasil, queimando-se etapas da evolução. Exemplos óbvios estão nos veículos flexfuel, nas mais de 500 variedades de cana-de-açúcar e outros. A própria experiência brasileira foi uma de fertilização cruzada com outros países produtores (África do Sul, Ilhas Maurício, etc.).

Finalmente, há o mito de que, como o álcool não pode hoje substituir totalmente o petróleo, o racional seria esperar por outros avanços tecnológicos. Esquece-se aí de que a incerteza tecnológica e a diversidade geográfica impõem a experimentação simultânea em várias direções, cada uma delas podendo se considerar exitosa desde que, como o álcool, permita menor dependência mundial em relação aos combustíveis não renováveis. A rigor, é na demanda de combustíveis fósseis para transportes que se encontrarão os maiores desafios de substituição nas próximas décadas.

*Otaviano Canuto, diretor executivo no Banco Mundial e professor da FEA-USP, foi secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda.Home page: www.worldbank.org/eds15

Arquivo do blog