Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, agosto 08, 2006

A guerra acabou CELSO MING Estado




Hiroo Onoda foi o tenente japonês que permaneceu 30 anos enfurnado nas selvas da ilha de Lubang, sul das Filipinas, vivendo de banana, coco verde e répteis.

Ele seguia cumprindo as ordens de não se entregar ao inimigo. Foi encontrado 29 anos depois que a guerra acabou. Só deixou seu posto quando seu antigo comandante, o ex-major Yoshimi Taniguchi, foi até ele e ordenou que se rendesse.

Um grande número de economistas do Brasil continua pensando como Onoda em Lubang. Para eles, o principal problema da economia brasileira ainda é a vulnerabilidade externa, que foi a guerra do período Vargas até mais ou menos meados de 2003.

Vulnerabilidade externa é a propensão da economia a sangrar dólares, seja pela entrada insuficiente de recursos externos, seja pela fuga de capitais. A legislação cambial até agora visava a evitar crises cambiais.

Os novos tempos são de grande virada, que se caracteriza pela abundância de recursos em moeda estrangeira. A dívida externa, pesadelo nos anos 70, 80 e 90, já não existe. O setor público brasileiro é credor líquido em dólares, na medida em que as reservas externas já são maiores do que a dívida externa pública remanescente. Essas reservas estão aplicadas em títulos do Tesouro dos países industrializados. Em outras palavras, o Brasil passou a emprestar dólares para os países ricos, especialmente para os Estados Unidos.

O primeiro a identificar a virada foi o professor Antonio Barros de Castro, há dois anos. Pena que não desenvolveu o diagnóstico e não o levou às últimas conseqüências. O que mudou foi a função do Brasil no mundo. Para entender isso melhor, é preciso voltar ao arranjo anterior.

Os Estados Unidos surgiram como potência industrial no final do século 19. Como eram quase auto-suficientes em matérias-primas, dispensaram fornecimentos do resto do mundo. Como produtores quase exclusivos de produtos primários, os países da América Latina, especialmente o Brasil, não tiveram papel relevante no mundo dominado pelos Estados Unidos.

O atual momento marca a emergência de novos players. China, Índia, Rússia, Coréia do Sul e meia dúzia de tigres asiáticos surgem como potências em situação diferente da que tiveram os Estados Unidos no século 19. É o que explica a escalada das exportações brasileiras. Neste ano, o Brasil exportará perto de US$ 9 bilhões só em minério de ferro. A Petrobrás tornou-se exportadora líquida de petróleo e derivados. Contribuirá, neste ano, com US$ 3 bilhões para o superávit comercial.

É verdade que, no passado, os juros precisaram ser elevados não para combater a inflação, mas para reter (ou atrair) capitais e, assim, evitar escassez de dólares. Mas, diante do novo quadro mundial, a função dos juros mudou. Não faz mais sentido pensar que derrubar os juros ajudará a reverter a tendência de valorização do real.

Ao contrário, o Brasil atrairá ainda mais dólares com os juros em queda, especialmente depois que as agências de classificação de risco conferirem grau de investimento à dívida brasileira. Também não tem cabimento impor controles ao fluxo de capitais num mercado em que os dólares não precisam mais entrar no País para influir nas cotações do câmbio.

Manter uma estratégia de política econômica para defender o País contra a escassez de moeda estrangeira é seguir enfurnado em Lubang, comendo lagartixas e coco verde, por ignorar que o mundo mudou.

Os problemas econômicos a equacionar são outros. Trata-se agora de garantir o crescimento num ambiente de real valorizado e, portanto, de dificuldades crescentes para a indústria nacional. E de criar empregos em segmentos cuja expansão dispensa mão-de-obra.

Já não serve mais erguer altas barreiras alfandegárias para proteger o mercado local contra invasão de importados. Chineses, coreanos e indianos estão tomando o mercado brasileiro não aqui dentro, mas lá fora. Enquanto isso, os líderes da indústria, especialmente dos setores mais atingidos (calçados, têxteis e máquinas), pedem mais câmbio. O dólar barato só agrava o verdadeiro problema.

A guerra da vulnerabilidade externa acabou. A guerra agora é outra. É preciso tomar consciência disso.

Arquivo do blog