Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 06, 2006

Folha de S.Paulo - Rubens Ricupero: Colcha de retalhos


TERREMOTOS de diversa intensidade abalaram nas últimas semanas as estruturas de aparente estabilidade das relações internacionais e destruíram o enganador sentimento de segurança a que se vinham acostumando os países.
O cenário econômico sofreu três rachaduras: 1ª) o fracasso, queira Deus que não irreversível, do esforço de liberalizar o comércio agrícola na OMC (Organização Mundial do Comércio); 2ª) os sinais inequívocos de desaceleração e, quem sabe, de início do inevitável ajuste da economia norte-americana; 3ª) o salto do preço do petróleo, agora para patamar perto dos US$ 80 o barril.
A geoestratégia do mundo registrou os seguintes abalos: 1º) uma repetição da invasão do Líbano por Israel, dessa vez visando ao Hizbollah, com níveis de desumanidade contra civis e destruição indiscriminada e desproporcional de infra-estrutura como não se viam desde 1982, ao mesmo tempo em que se conduzem hostilidades num segundo front contra os palestinos do Hamas; 2º) ultimato do Conselho de Segurança ao Irã; 3º) primeira admissão pelos comandantes militares americanos de que o Iraque está à beira da guerra civil.
Não faltaram as ondas de choque nas Américas: 1ª) a estréia, na reunião de Córdoba, do estranho organismo transgenético oriundo da manipulação do Mercosul pelos genes da Alternativa Bolivariana; 2ª) a contestação nas ruas das eleições mexicanas, após o apertado primeiro turno da sucessão peruana; 3ª) o crepúsculo final (?) do longo reino de Fidel Castro em Cuba.
Tremores menores se fizeram sentir aqui e ali, dos mísseis da Coréia do Norte ao recrudescimento dos combates no Afeganistão, das escaramuças argentino-uruguaias às inquietantes perturbações bolivianas.
Em meio a tantos indícios de mudanças, a América Latina aparece cada vez mais desunida, confusa e irrelevante, a ponto de tornar uma ficção o próprio conceito de uma personalidade continental, latino ou sul-americana, com perspectivas e interesses específicos e comuns.
Embora por razões negativas, a disputa ideológica da Guerra Fria reservava alguma atenção secundária a um espaço em que a Revolução Cubana, a crise dos mísseis de 1962, o sandinismo na Nicarágua, a guerrilha em El Salvador ou na Guatemala ameaçavam de vez em quando influir no jogo estratégico das superpotências. Nessa época, iniciativas como a Operação Pan-Americana, de Juscelino, ou a Aliança para o Progresso, de Kennedy, criavam a ilusão de temas unificadores construtivos.
O colapso da URSS e do comunismo, a pacificação das guerrilhas, a derrota do sandinismo, o isolamento crescente de Cuba principiaram a retirar a América Latina da agenda mundial. O movimento se completou com a emergência, após os atentados de 2001, de nova agenda dominada pelo terrorismo internacional, o conflito do Oriente Médio, a proliferação de armas de destruição maciça, temas para os quais nosso continente é de importância periférica, para o bem ou para o mal. Abandonados à própria sorte, esses países passaram a olhar para si mesmos, derivando ora para o neonacionalismo da Argentina, da Venezuela, da Bolívia, ora para a busca da salvação individual por meio de acordos bilaterais com os EUA, como o Chile, a Colômbia, o Peru, com veleidades no mesmo sentido do Equador, do Uruguai, do Paraguai. Seguem, assim, o exemplo do México, da América Central, do Caribe, já avançados na integração ao espaço norte-americano pelo comércio e a emigração, legal ou clandestina. Nesse ambiente de desagregação de grupos puramente latinos, como o Andino ou o Mercosul, não existem temas unificadores comuns. É sensível a retração do Brasil, que, exceto na OMC, dá a impressão de ir a reboque de figuras mais afirmativas como os líderes argentino ou venezuelano. Chávez, único líder com pretensões de projeção continental ou mundial, é, cada vez mais, um signo de divisão.
O futuro governo herdará um mundo e um continente muito diferentes dos que existiam em 2003, no início do mandato atual. Este é o momento de reconhecer as transformações e começar a reavaliar os pressupostos e conclusões que nos inspiraram até agora a ação em nossa área de influência direta e no cenário mundial.

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