Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 06, 2006

Folha de S.Paulo - Ferreira Gullar: Crime e castigo

O RAPAZ foi preso no momento em que assaltava uma residência do condomínio onde trabalhava. Interrogado pelo delegado, confessou ter também matado, a golpes de pé-de-cabra, meses atrás, um casal americano que morava no mesmo condomínio. Contou como pulou o muro e entrou na residência do casal, sem dificuldade, porque a fechadura da porta principal não trancava. Assim, chegou ao quarto e, conforme confessou, deparou com o casal dormindo, estando o marido à esquerda do leito e a mulher à direita; disse quantos golpes deferiu na cabeça de cada um deles e as coisas que roubara. Tudo conferia com o que a polícia apurara, sem deixar dúvidas.
No dia seguinte, foi designado um advogado para defendê-lo. Após o encontro dos dois, o rapaz desmentiu tudo o que confessara: não matara ninguém, nunca entrara na casa dos americanos e só admitira tê-los assassinado porque havia sido ameaçado pelo delegado.
Trocando em miúdos: ao ouvir do rapaz a confissão que fizera à polícia, o advogado, imediatamente, o orientou no sentido de negar tudo. Embora sabendo da culpa do rapaz, embora tendo ouvido a confissão detalhada do duplo homicídio, o advogado dispôs-se a impedir que ele pagasse pelo crime que cometera. Pergunto: a função do advogado de defesa é impedir que se faça justiça?
Não sou advogado, não sou jurista, logo falta-me competência para descer aos arcanos das leis. Apesar disso, como cidadão, tenho necessidade de entender de que modo a justiça é feita, mesmo porque ela é o fundamento da sociedade. Quando a Justiça falha, o convívio social fica ameaçado pela arbitrariedade. Logo, não se pode aceitar que o advogado de defesa se atribua a função de evitar que um assassino confesso seja punido por seu crime.
Não é admissível que se tenha criado com esse propósito a figura do advogado de defesa. Ele existe para impedir que o inocente seja condenado, e não para garantir a impunidade do criminoso. Seria um absurdo que a própria Justiça criasse um instrumento para se anular. Talvez por deformação profissional, busca de notoriedade ou entendimento equivocado de seu papel, o advogado de defesa, com honrosas exceções, atua na prática como inimigo da Justiça.
Agora mesmo, no caso de Suzane Richthofen, o país assistiu ao advogado dela lançar mão de meios inaceitáveis para livrá-la da condenação, mesmo sabendo de sua participação direta no massacre de seus pais. Causa espanto que um profissional, formado para trabalhar na aplicação das leis, demonstre tão pouco apreço aos valores humanos e sociais.
Não tenho prazer nenhum em punir alguém e sofro quando penso nas pessoas que, condenadas, passam anos de sua vida em penitenciárias, e, pior, nas penitenciárias do Brasil, superlotadas, em que o preso está sujeito a todo tipo de violência.
A punição não pode ser entendida como vingança contra o transgressor e, sim, como a necessidade de fazer valer as normas do convívio social, já que, sem elas, voltaríamos à barbárie. A reforma do sistema penitenciário é uma necessidade que todos reconhecem, mas, seja por que razão for, tem sido sempre adiada ou empreendida sem a urgência que se impõe.
O aumento da criminalidade tem levado muitos setores da opinião pública a reclamar da frouxidão de nossa legislação penal e do procedimento dos juízes.
Recentemente, causou revolta uma decisão do Supremo Tribunal Federal que estendeu o benefício de progressão da pena a condenados por crimes hediondos. Como conseqüência dessa decisão, criminosos de indiscutível periculosidade, reincidentes, muitos deles, na prática de crimes graves que vão do homicídio à chefia do tráfico de drogas, serão em breve postos em liberdade, já que alguns deles completaram um sexto da pena.
Conforme o noticiário dos jornais, esses criminosos já acionaram seus advogados para obter o benefício. Quem sabe, em breve, estarão de volta às ruas Fernandinho Beira-mar e Marcola. Tudo isso gera na consciência do cidadão a descrença na Justiça e, em muitos, a certeza de que, em nosso país, o crime compensa.
Na célebre tragédia de Sófocles, "Édipo Rei", a par da simbologia psicanalítica identificada por Freud, há uma outra: a da irrenunciável necessidade de que a justiça seja feita. Tebas só se livrará da peste quando o responsável pela morte de Laios for identificado e punido. Sófocles nos ensina que, quando a Justiça falta, a comunidade humana adoece.

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