Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 06, 2006

EPOCA NTREVISTA FHC

ENTREVISTA

Por um Plano Real na política

O principal desafio do próximo presidente será fazer a reforma política.

David Friedlander e Guilherme Evelin

Depois do escândalo das sanguessugas no Orçamento, a reforma política entrou no topo da agenda do governo e da oposição. Na semana passada, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva apoiou a idéia de um grupo de juristas, a favor da criação de uma Assembléia Constituinte exclusiva para acelerar a aprovação da reforma no próximo mandato presidencial. No mesmo dia, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso recebeu a reportagem de ÉPOCA para uma entrevista na sede do Instituto Fernando Henrique Cardoso, no centro de São Paulo. A entrevista se estendeu até o momento em que FHC teve de sair para conseguir chegar a tempo ao espetáculo da trupe circense canadense Cirque du Soleil. Na entrevista, ele disse que a implementação de mudanças no sistema eleitoral deve ser a prioridade máxima do próximo governo, para evitar um colapso institucional. Para FHC, a gravidade dos efeitos na sociedade da crise no Congresso se assemelha à hiperinflação anterior ao Plano Real. "A reforma política só vai acontecer em crise", disse ele. "O Plano Real só funcionou porque estávamos em crise. Na crise, você tem espaço se tiver liderança." Se não houver convergência de governo e oposição em torno da reforma política, diz o ex-presidente, o risco é haver uma cisão política no país. "Quando se divide um país, leva muito tempo para restabelecê-lo", afirma FHC. A reforma seria, portanto, o principal desafio do próximo presidente, seja ele de qual partido for.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Quem ele é
Sociólogo, político e presidente de honra do PSDB

O que ele fez
Foi presidente da República entre 1995 e 2003 e ministro das Relações Exteriores e da Fazenda no governo Itamar Franco. Cumpriu dois mandatos como senador e ajudou a fundar o PSDB

O que ele publicou
Autor de 14 livros e co-autor de outros seis. Suas obras mais recentes são A Arte da Política - A História Que Vivi e Cartas a um Jovem Político

ÉPOCA - A dois meses das eleições, Lula continua muito na frente nas pesquisas. Alckmin tem alguma chance?
Fernando Henrique Cardoso
- Neste momento, Lula está na frente. Mas há um mês, estava muito mais. O Lula está acostumado a ter 40% e perder, não é? Para mim, perdeu duas vezes. O Geraldo (Alckmin, candidato do PSDB) ainda tem chance de ganhar.

ÉPOCA - O senhor chegou a achar que Lula ganharia no primeiro turno?
FHC
- Cheguei sim. Agora, não sei qual vai ser o resultado da eleição, mas é preciso evitar essa coisa de quem perde inviabilizar quem ganhou, como no México. E há esse risco, sobretudo se o Geraldo ganhar. É preciso evitar a divisão do país. Quando se divide um país, como no México, leva muito tempo para restabelecê-lo. Quem é homem de Estado tem de pensar na nação. Lula começou com o discurso de elite contra povo, pobre contra rico. Esse negócio é perigoso, porque é demagogia. Ele parou um pouco, mas não sei o que vai acontecer até a eleição. Se o Geraldo ganhar, não sei o que vai acontecer. Tomara que o desfecho seja democrático. Acho que o Lula tentará ser, e não tenho nenhuma desconfiança em relação a ele. Mas talvez seja complicado por causa das forças em volta do partido (o PT). Esse é o grande desafio do próximo presidente: evitar a cisão do país e buscar mecanismos de reforma política.

ÉPOCA - O Brasil está rachado?
FHC
- A cúpula está rachada, mas o povo não. O povo está indiferente. Agora, se continuar assim, ele não vai continuar indiferente. Vi isso no Brasil em 1964. Só não é a mesma coisa, porque não há agora a Guerra Fria e o país está vacinado contra a ditadura.

ÉPOCA - O senhor acha que uma aliança nacional em torno de um programa consensual tem viabilidade?
FHC
- Acho que teve em 2003. Depois da transição pacífica que fizemos, pensamos que o PT iria caminhar para uma convergência. Mas eles tomaram a decisão oposta. Quem definiu que o PSDB era o inimigo principal foram eles. Foram fazer as alianças que fizeram com o outro lado. Não com a direita, mas com o atraso.


''Se o Geraldo ganhar, não sei o que vai acontecer. Tomara que o desfecho seja democrático. Não tenho desconfiança nenhuma em relação ao Lula, mas temo pelas forças em torno do PT''

ÉPOCA - Mas, na verdade, a base política deste governo e a do seu são muito parecidas.
FHC
- O Luiz Werneck Viana (cientista político) disse que o problema do Brasil é saber quem comanda o atraso: PT ou PSDB. Mas agora quem está no comando é o próprio atraso. O problema deste governo não foi a base. A base é a mesma. Só que o Lula não manda nada. Para comandar, você precisa saber para onde vai. Mas a sensação é que eles não sabem. O projeto deles é o nosso. Talvez nem haja outro, porque a História não tem projeto novo a todo momento. Mas então que eles assumam e parem de ficar fingindo que é herança maldita. Claro que, se o Lula for eleito, a eleição dá energia política. Mas o Lula não tem paciência para esse jogo. Lula mais conversa com o país que administra ou faz política. Ele é mais simbólico que efetivo. E, se exagerar muito no simbólico, fica sem comando.

ÉPOCA - Quais as conseqüências dessa sucessão de escândalos no Congresso?
FHC
- Dizem que as sanguessugas começaram em meu governo. Mas quem começou com sanguessugas? Com o Pedro Álvares Cabral. Não é essa a questão. A questão é que as sanguessugas se tornaram insuportáveis. Chega um momento em que passa do limite, com efeitos desestabilizadores. Os próprios parlamentares sentem que estão perdendo o solo. Muitos deputados têm me dito: "Olha, não vou mais ser candidato". Ontem, um me telefonou e disse: "Presidente, estou desesperado. O Congresso é uma coisa que não funciona, não sei o que estou fazendo aqui". É possível isso? Como pode haver uma democracia sem parlamento? Se fosse em outra época, essa desmoralização do Congresso dava em ditadura. Agora, dá a sensação de marasmo, de que nada anda. Essa questão é a mais urgente.

ÉPOCA - Em seu governo, todo mundo já sabia da necessidade da reforma política. Por que nada foi feito?
FHC
- Como presidente, disse que a reforma política era com o Congresso, porque queria fazer as outras reformas. Agora, não tem mais jeito. A reforma política só vai acontecer em crise. O Plano Real só funcionou porque estávamos em crise, com escândalo dos anões, inflação, tudo junto. Na crise, você tem espaço se tiver liderança.

ÉPOCA - A reforma política hoje tem a mesma urgência que tinha o Real?
FHC
- Precisamos de um Plano Real na política, como disse o economista Albert Fishlow. Em meu governo, a questão era econômica. É claro que o Brasil tem desafios econômicos, tem de crescer mais, mas aprendemos a manejar a economia, sabemos qual é o problema. Ele é grave, mas está circunscrito à falta de capacidade do governo de investir. Quando o Lula foi para o governo, sabe o que pensei? Disse a ele: assim como eu tive de enfrentar a inflação, você tem de enfrentar a questão da segurança. Pensei que fosse o mais dramático. Mas você não enfrenta a insegurança com a desmoralização política.

ÉPOCA - A fidelidade partidária é o mais importante na reforma política?
FHC
- Lei de fidelidade partidária é bom, mas não vai resolver a indiferença entre o eleito e o eleitorado. Reforma política é reforma do sistema eleitoral. Tem de botar o voto distrital no Brasil, porque precisa haver uma relação mais próxima do eleito com o eleitorado. Hoje, não há nenhuma. Quem vota não sabe em quem votou e quem foi eleito não sabe por quem foi votado. Falam em instituir o sistema do recall no Brasil (o mecanismo americano por meio do qual os eleitores podem cancelar um mandato e convocar novas eleições). Mas como? Recall só pode existir quando um distrito que votou no candidato não o quer mais. No Brasil, ninguém sabe em quem votou. É preciso buscar uma forma de identificação, de laço. Eu era favorável ao voto distrital misto. Agora quero o voto distrital puro. O misto se justificava por causa das minorias, como os partidos comunistas e os verdes. Mas esses partidos vão desaparecer com a cláusula de barreira e vão se misturar aos outros. Então, para que misto? Vai direto para o puro. Pode começar pela eleição para vereador em 2008.

ÉPOCA - O presidente é quem vai ter de comandar a reforma política?
FHC
- Acho que sim. Não sei se vai haver liderança para fazer uma reforma política. Se não houver, vamos pagar um preço.

ÉPOCA - Lula não é um líder?
FHC
- Ele é. Foi o que aconteceu no PT. Sobrou o Lula, porque ele é líder. O Lula é grande tático, mas não é um estrategista. A liderança dele é tática. Ele sempre se sai bem taticamente, mas vai para onde? Ele é muito intuitivo. Mas, no mundo moderno, é preciso mais que intuição.

ÉPOCA - E o Geraldo Alckmin?
FHC
- Ele tem tudo o que é necessário para ser presidente, ponto.

ÉPOCA - O senhor afirmou recentemente que José Serra era o mais preparado para ser presidente e pegou mal.
FHC
- Não pegou mal. Todo mundo sabe que eu acho isso. O Geraldo também sabe. O Serra está preparado para ser presidente. É experiente. O Geraldo também tem experiência. Foi deputado e se saiu bem como governador. O mais difícil era o Lula, que tinha menos experiência e pagou um preço por isso. Agora, existem vários tipos de liderança. O Geraldo consegue, sem ter o carisma do Lula, manter uma boa conversa com a sociedade. Você verá no horário eleitoral na televisão, porque a conversa com o país é televisiva. Costumo dizer o seguinte: liga a TV, tira o som e veja o jeitão da pessoa. O grosso da população está mais interessado no jeitão da pessoa que no discurso. Você tira o som do Lula e vê que ele fala. A Heloísa Helena fala também. O Geraldo fala. Ele não fala com os mesmos públicos que ficam entusiasmados com a Heloísa Helena, mas fala.

ÉPOCA - O sociólogo Francisco de Oliveira deu uma entrevista recente em que lamentou o fato de a política ter se tornado irrelevante. Ele não está certo?
FHC
- Quando ele diz que a política é irrelevante, tem no horizonte a revolução. Política para ele é tomar decisões que mudem a estrutura do poder. Nesse sentido, ele tem razão. Hoje você não tem no contexto atual uma revolução social. Para surpresa de todos nós, educados com a idéia da revolução e do conflito de classes, hoje o conflito é religioso ou nacionalista. E o capitalismo não vai mudar num horizonte previsível de tempo. Se você quiser dar murro em ponta de faca, pode dar à vontade, mas sua mão vai ficar machucada. A faca não vai entortar por isso.

ÉPOCA - A globalização não diminuiu o poder de manobra dos governos?
FHC
- Acho que é o contrário. Você acha que o centro das decisões era maior no Brasil no passado? Isso é mitologia. Como você era desconectado, pensava que era livre. Mas não era. Era irrelevante. Tinha muito menos possibilidade de fazer alguma coisa.

ÉPOCA - Mas o ritmo de crescimento da economia brasileira só diminuiu nas últimas décadas. O que o Brasil ganhou com a globalização?
FHC
- As pessoas falam que não cresceu o PIB, mas isso é uma certa ilusão. No Brasil, tivemos investimentos diretos produtivos de mais de US$ 200 bilhões após o Plano Real. A base produtiva mudou inteiramente. O Brasil hoje é outro país. Pega a indústria têxtil no passado e a de hoje. Ou a de calçados, de móveis... Para não falar de avião, cimento, siderurgia. Tudo mudou completamente. Houve um grande investimento, não só externo como interno também. E, como o Brasil é remoto diante do centro do mundo, a globalização não nos impediu de ser um pólo aqui na região. Exportamos hoje mais manufaturados que nunca em nossa História. Para quem? Para a América Latina e para os Estados Unidos. Encontramos um eixo que nos permitiu certa integração. No passado, estávamos voltados para dentro e para uma indústria de segunda ordem.

ÉPOCA - Por que as pesquisas mostram que sua imagem é negativa e mostram que ela pode atrapalhar a campanha do PSDB?
FHC
- Veja o Tony Blair como está lá. É fadiga de material. Inevitável. Sempre sou muito bem recebido em qualquer lugar a que vou. O brasileiro é muito gentil. Nunca sofri a menor agressão nem aqui nem fora. Uma vez estava com a Ruth (Cardoso, mulher de FHC) na Grécia, no aeroporto, e havia um casal com duas crianças. Olharam e chegaram mais perto. "Eu acho que conheço você. É da Globo, né?" Eu disse: "Era, mas acabou meu contrato".

Foto:Frederic Jean/ÉPOCA

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Em Cartas a um Jovem Político (editora Campus), o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso retoma o que diz ser seu maior prazer: ensinar. Seu novo livro traz conselhos para quem deseja tentar a sorte na carreira política. Seus principais conselhos.

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