Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, agosto 14, 2006

Folha de S.Paulo - Entrevista - Luiz Carlos Mendonça de Barros



Lula faz populismo cambial e Mantega é seu puxa-saco

Economista afirma que país desperdiça atual força das contas externas, que poderia financiar taxas de crescimento mais aceleradas, e critica gasto público

Na quinta passada, o risco Brasil caiu ao piso recorde de 205 pontos. Seguiu uma combinação de juros estáveis nos EUA, crescimento internacional, commodities com preços elevados e, principalmente, de juros brasileiros nas alturas. Estima-se que US$ 15 bilhões entrem no país no segundo semestre e que as reservas internacionais passem dos US$ 80 bilhões neste ano. Olhando para esse cenário, Luiz Carlos Mendonça de Barros falou à Folha na semana passada.

FERNANDO CANZIAN
DA REPORTAGEM LOCAL

Luiz Carlos Mendonça de Barros, economista e tucano roxo, afirma que o ministro Guido Mantega (Fazenda) é "um mão-mole" e "puxa-saco do Lula". Chama o presidente de "oportunista" e o acusa de fazer "populismo cambial" ao desperdiçar a chance de permitir que o país cresça mais.
"Me dá vontade de sair gritando na rua: "Não é possível que vocês não enxerguem isso!'", afirma. "Isso" é a enxurrada de dólares que irriga o que ele chama de "coração novo" do Brasil.
"Estive lá no Plano Cruzado, depois no Real. Vivo o mercado. Dá para ver claramente o que é. O Brasil tinha um coração fragilíssimo. Se desse um pique, tinha um treco. Tínhamos déficit em dólar. Isso mudou."
Mendonça de Barros diz que equivalem a "aspirina para pneumonia" as medidas do Banco Central, até aqui, para conter a valorização do real. A única saída, diz, é crescer. Com juro mais baixo para frear o ingresso de dólares e com mais abertura comercial.
Dois problemas. Embora diga que o juro está "errado", o economista entende a cautela do BC, a quem chama de "bastião de uma certa ortodoxia" no governo. A despesa, afirma, "é uma conta aberta" na "mão-mole" da Fazenda.
Segundo: Lula faz "populismo cambial". "Se você olhar a melhora na renda, 70% dela é devido ao câmbio. Tivemos uma redução extraordinária do custo de alimentação. Não é o Bolsa-Família. É o Bolsa-Família com o câmbio."
O economista afirma que o populismo cambial de Lula é diferente, no seu financiamento, do feito por FHC na reeleição de 1998. "Na época, era com dinheiro emprestado. Agora, é com dinheiro nosso, de exportações. É mais perene." Ao longo do caminho, prevê, perderão a indústria mais complexa e a classe média, aprofundando a polarização entre os ganhos dos rentistas (via juros) e dos mais pobres (via câmbio).

 


FOLHA - Apoiado em um cenário externo muito favorável e embora crescendo pouco, o Brasil mostra que as classes D e E entraram mais no consumo. Que há maior distribuição de renda, ainda que pela via do Bolsa-Família, e mais empregos, ainda que precários. Avançamos?
LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS - É evidente que a incorporação e a redução da pobreza é uma situação que não se pode ir contra. Ela faz sentido, seja do ponto de vista econômico, social ou político. O que precisamos ver é como isso se deu. Se faço a economia crescer 6% ou 8% ao ano e direciono os gastos do governo para os mais pobres, essa é a forma correta de acoplar crescimento econômico com desenvolvimento social.
Mas não é isso o que está acontecendo. Se olharmos a melhoria de renda no Brasil hoje, 70% dela é devido ao câmbio, via o canal dos alimentos, que pesam 70%, 80% no consumo dos mais pobres. Em outras palavras: com o mesmo salário nominal e com o salário mínimo crescendo em termos reais, você teve um poder de compra 60% maior nos alimentos. É isso que mudou na renda. Não é o Bolsa-Família. É o Bolsa-Família com o câmbio.

FOLHA - O sr. diria que tem um "populismo cambial" aí?
BARROS - É claramente um populismo cambial.

FOLHA - Mas o governo não tentou, de várias maneiras e sem sucesso, desvalorizar o real?
BARROS - Isso aí é aspirina para pneumonia. A diferença de agora e de quando falavam que tinha populismo cambial no governo Fernando Henrique é que a valorização do real, na época, era feita com dinheiro emprestado. Agora, é feita com o nosso dinheiro, com o dinheiro das exportações. Então, ela é mais sólida, mais perene. Mas não estamos discutindo quais são os custos futuros associados a esse ganho de renda presente. Essa é a questão fundamental. Eu só acredito que haja um processo de desenvolvimento econômico, de melhoria de distribuição de renda, quando ele é baseado em emprego, salário e mais educação. Não é isso o que estamos vendo, ao contrário. Se olharmos o emprego formal vemos que quem ganhava até dois salários mínimos eram 28% há alguns anos. Hoje, são 50%.
É evidente que quem ganha até dois salários está vivendo muito melhor. Agora, como é que eu chego para esse sujeito e digo: "Olha, você precisa tomar cuidado porque o que nós estamos fazendo é gastando poupança, que podia estar sendo feita para melhorar a situação do seu filho e a sua situação mais à frente". Isso não é dito.
Nesse sentido, o populismo cambial do Lula é mais grave que o de Fernando Henrique, porque lá atrás era com dinheiro emprestado. Quem era contra sabia que era questão de tempo para acabar. Isso aqui não. Pode demorar. E esse tipo de doença pode fazer com que o Brasil perca a chance que o mundo está nos dando.

FOLHA - O que dá para fazer de diferente hoje no câmbio?
BARROS - O Brasil só tem um jeito de resolver o excesso de saldo comercial: crescer mais e fazer as importações crescerem por causa do crescimento. Temos hoje importações crescendo por substituição de produção interna, por consumo. Nós estamos vivendo uma situação em que você tem um grupo, que ainda domina o pensamento econômico do governo, que ainda está muito centrado no passado, nas crises externas, na inflação. E não está conseguindo enxergar esse momento de oportunidade. Para que ele seja maximizado, é preciso uma série de reformas, que não são mais reformas macroeconômicas, mas microeconômicas. Este tipo de discussão, infelizmente, não existe.
A impressão que passa, do próprio Lula, é de que está tudo uma maravilha. Não é verdade. Já estamos comendo nossa pele e isso vai aparecer. O primeiro momento em que isso vai aparecer será quando a previsão dos otimistas, de um PIB de 4% neste ano, não vingar. E não vai porque as importações aumentaram muito. Boa parte da produção interna já está sendo substituída por importações. Esse é um processo que, quando se instaura, não acaba mais.

FOLHA - Imagino que o governo não seja masoquista de não querer que o país cresça. O que o sr. faria de diferente hoje do que o Banco Central faz na questão dos juros?
BARROS - Não precisa ser PT, PSDB, ortodoxo, heterodoxo, para ver que o juro está errado. O juro real é o mesmo de quando tínhamos um risco-país de 300, 400 pontos. Hoje, temos 200. O país exportava muito menos, não tinha reservas. Hoje, temos US$ 70 bilhões. O juro está errado por definição. Simplesmente por comparação. Temos um juro real de 10% e é muito difícil crescer assim. O juro é só o topo do iceberg. É um negócio tão desproporcional que chama a atenção. Mas o que vemos é o Lula acomodado. Ele é o maior defensor da taxa de câmbio valorizada. Pois é o maior beneficiário.

FOLHA - O sr. acha que o governo ainda não mexeu nisso porque a política está levando o presidente-candidato à reeleição ou porque ainda não viu o que o sr. diz ver?
BARROS - Claramente, olhando para a história dele, o Lula é um oportunista. "Por que eu vou mudar uma coisa que está me dando esse tipo de popularidade?" É difícil. Veja, o Fernando Henrique passou pelo mesmo processo. "Por que eu vou mudar o câmbio se eu estou tão bem?" É difícil para quem não é do ramo, para quem não é economista. Essa é a primeira motivação para o Lula não mudar. A segunda são os puxa-sacos, e está cheio, porque não é só o pobre que está se beneficiando. O rico também está, via mercado financeiro. Você olha os lucros dos bancos brasileiros, é um crime. E quem é que está perdendo? É quem está no meio. O cara que ganhava oito salários mínimos e depois ficou desempregado porque a fábrica precisou reduzir custos e agora está ganhando cinco salários. O cara que ganhava cinco, que hoje ganha dois. A agricultura está perdendo. O setor exportador. Se você abrir a indústria, tem setores que já estão em processo de recessão. É uma coisa engraçada. Talvez a história venha mostrar que a maior marca do Lula foi ter provocado a maior divisão na sociedade.
É uma divisão absolutamente irracional, que reflete um pouco a falta de coerência política do PT e do Lula. O banqueiro ganha e o sujeito do Bolsa-Família ganha. Ganha o rentista e o sujeito que ganha até dois salários. E o sujeito que está trabalhando? Você pega o salário de um engenheiro recém-formado e vê que ele foi proletarizado. Por quê? Porque não tem demanda. É um momento muito angustiante. Tudo isso detonado, basicamente, pela parte externa. Só que isso está criando movimentos encadeados de mudanças rápidas dentro do tecido econômico.

FOLHA - Como reverter esse encadeamento para um lado positivo?
BARROS - Primeiro, é preciso tomar consciência que o lado externo mudou de uma forma estrutural e há mudanças a fazer na parte fiscal. Hoje, nós estamos tirando renda da parte eficiente da economia e dando para o governo para distribuir isso para o sujeito comer. Isso é muito bom do ponto de vista da distribuição de renda, mas do ponto de vista de uma economia de mercado é o pior caminho que você tem. Nós temos 39% do PIB de carga fiscal e ainda temos déficit no governo.
A equação para mim é muito clara: é reconhecer que a parte externa me permite ser muito mais ousado em termos de crescimento econômico. Mas, para eu ousar mais, preciso restabelecer uma certa eficiência econômica, que começa pela redução da despesa do governo. Ela permitirá, posteriormente, uma redução da carga tributária e dos juros maior do que o governo vem fazendo.

FOLHA - O sr. vê o candidato Geraldo Alckmin imbuído desse pensamento? O sr. está participando?
BARROS - Participo. O PSDB tem, para o bem e para o mal, grande diversidade de pensamento econômico. A opção que o candidato fez, que me parece definitiva, é pelo crescimento.

FOLHA - E o trauma do "vôo de galinha", do velho "stop and go"?
BARROS - Isso tudo era por causa do lado externo. Eu trabalhei no governo. Estive lá no Plano Cruzado, depois no Real. Vivo o mercado. Dá para perceber claramente o que é. A seqüência era essa. O Brasil tinha um coração fragilíssimo. Se desse um pique, tinha um treco. Levava um susto de fora, outro treco. Não havia reservas. Você tinha déficit de dólar. Isso mudou. Me dá desespero e vontade de sair gritando na rua: "Não é possível que vocês não enxerguem isso!". Está certo que eu vejo isso dez horas por dia, borbotões de dólares entrando. Outro dia o BC comprou US$ 700 milhões num dia. O Brasil compra US$ 5 bilhões por mês. E as pessoas estão com medo!

FOLHA - O sr. ficaria surpreso se o Lula fizesse algo na linha do que o sr. diz após uma eventual reeleição?
BARROS - Além de surpreso, eu iria de joelhos a Aparecida do Norte. Pode me cobrar isso.

FOLHA - Nos últimos anos, o BC trabalhou na diminuição da vulnerabilidade externa, na recomposição das reservas. O sr. não acha que esses mesmos sujeitos, olhando para esses números, não podem chegar a essa conclusão que o sr. chegou?
BARROS - Eles estão evoluindo na direção correta, mas muito len-ta-men-te. Eles estão com medo de avançar mais na redução dos juros e levar uma bola pelas costas na parte fiscal, que está um "samba do Crioulo Doido". Por isso é que a parte fiscal e a redução mais agressiva dos juros têm de andar juntas. A despesa hoje é uma conta aberta. É a cabeça desse pessoal. Você olha quem está no governo e dá medo. É gente que não sabe contabilidade, que não sabe onde debita e credita.

FOLHA - Em que áreas do governo?
BARROS - Em todas. O [Guido] Mantega, por exemplo, é um "mão-mole". O [Antonio] Palocci [ex-Fazenda] era um cara diferente, mas ele se foi.

FOLHA - O Mantega é "mão-mole" em que sentido?
BARROS - É leniente. Tudo é uma maravilha. Ele é um puxa-saco do presidente da República. Alguém no governo tem que ser o chato que era o Palocci. De falar: "Não dou, não deixo, não faço". Quem faz isso hoje? A Dilma [Rousseff, ministra da Casa Civil]? Aquele cara do Paraná lá [Paulo Bernardo, ministro do Planejamento], ex-bancário, caixa? Ele sempre pagou, nunca recebeu.
Acho que isso é que inibe o Banco Central. Ele fica com medo de ir mais adiante na velocidade dos juros. O BC é hoje o bastião de uma certa ortodoxia do governo. E se eu me vejo como o último bastião de uma certa racionalidade, como é que eu vou dar sinais de que vou entrar na onda dos outros?
Até acho que, como a inflação tem hoje uma outra dinâmica, o BC vai baixar o juro. O problema é que ele vai muito lentamente por causa do lado fiscal. E está certo. Esse é o drama do momento. É duro. Temos de reconhecer que quem vai votar no Lula está certo, porque a vida dele melhorou. Como é que eu vou dizer a esse sujeito que está comendo mais, o filho comendo mais, que isso tudo vai voltar em cima dele daqui a três ou quatro anos? Esse é o drama.
O Lula está a favor dessa política porque está dando certo para ele. Ele tem uma identificação com os mais pobres e colocou a economia nessa direção. Como é que você mostra que isso tem problemas? É mui-to di-fí-cil. Aí não adianta. Quando olhamos para trás, há momentos em que a história nos coloca nessas armadilhas.

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