Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 20, 2006

Daniel Piza

A corrupção das palavras




Governos corrompem a linguagem também. Movidos pela propaganda, distorcem sentidos de palavras ao sabor de suas conveniências. George Orwell, o autor de 1984, sabia disso como poucos. No governo Lula, de tantas "despesas não contabilizadas", uma das palavras que foram mais achatadas, descarnadas, é elite. Elite, antes de mais nada, significa o que de melhor uma sociedade produz; é um termo de teor qualitativo. Mas agora virou insulto. Isso se vê, por exemplo, na campanha eleitoral de TV que começou na semana passada: ter uma origem humilde é a primeira e maior garantia de que um governo é ou será bom. Um sujeito "bem-nascido" é absolutamente incapaz de exercer política a não ser em seu próprio favor. Como se o PT tivesse feito outra coisa no poder!

É claro que elite, em uma de suas acepções, é a minoria no topo da pirâmide social ou, de acordo com o glossário marxista, a "classe dominante". Mas isso hoje no Brasil implica que se trata de um grupo monolítico em sua desonestidade e crueldade secular. Pertencer quantitativamente à elite - ou à elite branca, no pleonasmo do governador Claudio Lembo - é ser um rico que só é rico porque o dinheiro dos pobres é tirado deles. Daí decorrem duas características muito curiosas: nessa vala comum estão todos os cidadãos da classe média para cima, não apenas da alta; e normalmente quem a menciona se auto-exclui, mesmo que há mais de 30 anos tenha o perfil estatístico exato (patrimônios, valores, preconceitos, hábitos) dos que a compõem.

Outra ironia: todo o discurso anti-elite de Lula, Dirceu e companheirada é influenciado por leituras reducionistas de professores universitários que citam Raymundo Faoro e Celso Furtado a torto e não a direito. Foram os intelectuais do nobre Morumbi - inconscientes da fonte rousseauniana de seus conceitos supostamente originais sobre a pureza de Pindorama em face da "triste civilização" européia - que ensinaram a Lula que o Brasil é governado há 500 anos pelas mesmas pessoas. Fazer tábula rasa da história e da sociedade brasileira é o esporte da "intelligentsia" local, que endeusou Lula como porta-voz das massas e que agora - apesar de ele ter feito o contrário de tudo que foi sonhado, de ser tucanamente a alegria dos banqueiros e oligarcas - se agarram ao fato de que seu eleitorado é em grande parte formado pelos pobres de regiões como a nordeste. E perdoam nele o que não perdoariam em ninguém.

Isso nos leva ao ponto mais interessante de todos: nossa elite - o segmento dos tomadores de decisão nos mais diversos setores da sociedade e do Estado - é mais populista que elitista. Elitismo é a suposição idiota de que só a algumas pessoas é dada a possibilidade de adquirir conhecimento e criar idéias. Sua nêmesis, o populismo, diz representar a massa e saber a solução para seus problemas. Esse populismo vemos o tempo todo nas emissoras de TV, nas gravadoras de discos, nas direções dos partidos, no marketing das empresas. Eles sempre têm certeza do que o público "quer", e que isso deve ser o mais banal e vulgar possível. Nivelar por baixo, jamais por cima. Tábula rasa. Ou seja: eles têm o mesmo desprezo pela inteligência das pessoas que os elitistas. Na verdade, muitas vezes são as mesmas pessoas. E elas dão as ordens neste grande programa de auditório ou "reality show" que é a ideologia brasileira atual. Sob o doce véu do paternalismo, distribuem a esmola de hoje e não a oportunidade de amanhã. E vencem.

DE LA MUSIQUE

Rosa Passos é perseguida pelo apelido de "João Gilberto de saias", dado seu estilo suave e quase minimalista. Deveria ser um elogio, mas termina distorcendo a descrição de seu trabalho. Como se ouve agora em Rosa, seu novo CD, ela solta mais a voz do que João, sem ter a radical originalidade dele. E em alguns casos isso dá excelente resultado, como na ousada versão em sete minutos de Sentado à Beira do Caminho, de Roberto Carlos (minha preferida ao lado de Nas Curvas da Estrada de Santos), em que "desbreguiza" a canção ao evitar a ênfase no final dos versos e alongar as sílabas anteriores para captar sua tristeza. Ela é melhor intérprete (canta ainda Tom, Chico, Drexler) que compositora, mas o CD todo é muito bonito.

RODAPÉ (1)

Descobrir um escritor é sempre um grande prazer. Descubro agora o uruguaio Felisberto Hernández (1902-64), que divide com Juan Carlos Onetti o pódio literário do país. (Curioso que a minha outra descoberta recente, o argentino Juan José Saer, era também hispano-americano.) Devemos ao crítico Davi Arrigucci a tradução de O Cavalo Perdido, de Hernández (Cosac Naify), que traz o longo conto do título e outros oito menores. A edição também reproduz um prólogo de Julio Cortázar. Por essa associação e por outras que li, imaginava a literatura de Hernández como uma espécie de Murilo Rubião ou J.J. Veiga de Montevidéu, um "realista mágico" algo mais experimental.

Nada disso. O maior sabor de sua prosa está nas descrições, intensamente minuciosas, ricas, combinadas com uma estranheza objetiva, de analogias e metáforas que criam um clima muito peculiar. Uma espécie de Proust cruzado com Kafka. (Não quer dizer que esteja à altura desses escritores; estou apenas reconhecendo ecos.) Neurologistas deveriam estudar sua prosa reflexiva, muito preocupada com o processo de formação de nossa memória, sem que abra mão do enredo. Ao contrário do que se diz, não é verdade que nela não há a mediação da consciência; ao contrário, ele leva a "vigilância constante e rigorosa" da consciência, como diz no texto final, até um ponto em que ela possa olhar as coisas desinteressadamente, deixar de ser quadrada e castradora, aproximar sentimentos e pensamentos. É preciso vigiar a sentinela.

Em sua narração do fascínio de um garoto por sua professora de piano, Celina, Hernández busca a "real imprecisão" das coisas, não sua irrealidade, com um amor a elas que só vemos em pintores como Braque e Morandi: "Certamente é verão, porque a luz do abajur produz transparências nos sinos brancos de suas mangas e em seus braços nus; eles se movem fazendo ondas que vão terminar nas mãos, nas teclas e nos sons."

RODAPÉ (2)

Depois de ler Enterrar os Mortos, de Ignacio Martínez de Pisón (Record), sobre a Guerra Civil Espanhola, fui reler as reportagens de Hemingway na coletânea By-Line (Scribner, 1998). A guerra, iniciada há 70 anos, ajudou a criar o mito moderno do "intelectual de ação", do homem de idéias que sai do gabinete e participa diretamente, fisicamente, da história. Nela estiveram, afinal, Hemingway, John Dos Passos, George Orwell, André Malraux - que se pintou como herói de guerra e depois foi desmascarado - e muitos mais, para ficar só nos estrangeiros. Ainda está para ser escrita essa história cultural do conflito, mas Pisón já adianta um bom trabalho ao centrar seu livro no debate entre os dois intelectuais americanos, "Papa" x "Dos", no centro da questão sobre o papel das esquerdas na luta contra os fascistas.

Em 1937, Dos Passos denunciou o fato de que os comunistas, apoiados pelo Kremlin, estavam mais concentrados em derrotar os anarquistas e trotskistas do que em enfrentar o inimigo. Na verdade, percebeu o autoritarismo da esquerda e foi atacadíssimo por Hemingway e os demais. Não dá para saber o que seria da Espanha caso os stalinistas a tivessem vencido, mas pelo menos do lado republicano havia gente como Dos Passos - ou como Orwell, que em Lutando na Espanha (Globo) também se detém sobre a luta interna entre anarquistas e comunistas. Para o "macho" Hemingway - que, justiça seja feita, escreveu textos de excelente fatura narrativa na Espanha e percebeu cedo como ela antecedia uma guerra mundial -, era preciso saber de qual lado se está lutando. Franco venceu, mas o mito do intelectual-combatente seguiu vivo, como a revolução de Cuba demonstraria vinte anos mais tarde.

POR QUE NÃO ME UFANO

Outro que acha que é preciso definir em qual dos dois lados se está é Christopher Hitchens, que fez em Paraty um discurso belicoso em favor da invasão do Iraque e bombardeio ao Líbano. Como quase todo ex-trotskista (Paulo Francis, por exemplo), Hitchens passou para "o outro lado" com a mesma contundência com que o atacava antes. Serviu de contraponto a Tariq Ali e sua visão reducionista, segundo a qual temos num canto o imperialismo americano e no outro a vítima islâmica. Mas e a sensatez?

Continua fora de moda, mesmo quando o debate não é dos mais ideológicos. Vide o caso do PCC. Geraldo Alckmin diz sobre a reação violenta dos bandidos algo semelhante ao que Condoleezza Rice afirmou sobre as mortes de cristãos no Líbano, que são "dores do parto" da luta pela democracia na região. O PCC, segundo Alckmin, está fazendo o que está porque acuado, enfraquecido. Não; como escrevi em maio, ele descobriu uma coisa mais poderosa, os alvos simbólicos, e - feito a Al Qaeda ou as Farcs - chegou agora ao extremo de seqüestrar repórter e fazer exigências em vídeo. Quando se enfrentam os bárbaros sem inteligência, fica-se parecido com eles.

E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br

Aforismos sem juízo

Amar é ganhar com a vitória do outro.

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