Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 19, 2006

Cora Ronai - Socorro!!! Como é que se pode viver assim?!

O GLOBO
Cronista pede, urgentemente, uma pílula azul, para fazer de conta que nada está acontecendo
Há um momento em “Zuzu Angel” em que a protagonista explode: — É tão fácil andar por aí fazendo de conta que nada está acontecendo! É, acho que era, sim. Não para quem tinha 20 anos e o sentimento do mundo, claro; mas sim, havia, sim, uma quantidade de pessoas que tocava a vida, pegava condução, ia ao cinema e bebia chope sem outra preocupação que não a vida imediata, real, palpável: o salário no fim do mês, a comida na mesa, a mulher, os filhos. Uma massa considerável de brasileiros não estava nem aí para a desconstrução do ensino básico, a falta de liberdade de expressão, a corrupção, as prisões, a tortura, o misterioso desaparecimento dos seus semelhantes.

Suponho que fosse fácil andar por aí fazendo de conta que nada estava acontecendo até porque, entre outras coisas, a imprensa, que tudo poderia denunciar, estava sob censura.

Ingênuos, achávamos que, quando a liberdade enfim chegasse ao país, traria consigo uma sociedade mais consciente, mais indignada, mais disposta a lutar por sua cidadania. Uma sociedade mais justa. Naqueles tempos binários do “nós” e “eles”, do “bem” e do “mal”, da “esquerda” e da “direita”, tudo era simples e óbvio.

Podíamos nos dar ao luxo de ter ilusões, e de achar que o país tinha jeito — apenas estava, temporariamente, em mãos erradas.

A ditadura acabou, os militares recolheramse aos quartéis, a imprensa não está mais sob censura. E o que descobrimos? Que não existe fundo no poço. Quando achamos que chegamos lá, abre-se um alçapão antes escondido e continuamos caindo. As denúncias cotidianas estampadas nos jornais não escandalizam mais ninguém; já sabemos que o Brasil sempre esteve, está e estará em mãos erradas, haja o que houver, eleja-se quem se eleger.

A esta altura, desfeitos os sonhos de juventude, bem que eu gostaria de andar por aí fazendo de conta que nada está acontecendo, mesmo porque ninguém agüenta tanta notícia desalentadora e vejo, na crônica, o espaço onde, às vezes, se pode refazer uma vaga sensação da normalidade perdida.

Mas, ao contrário do que diz Zuzu no filme, como é difícil andar por aí fazendo de conta que nada está acontecendo! Como é difícil ignorar a degradação do país e da cidade, como é difícil ignorar a degradação das pessoas! Como é possível andar por aí fazendo de conta que nada está acontecendo?! Pois a julgar pelos resultados das pesquisas eleitorais, que apontam uma ampla possibilidade de vitória de Lula, uma nova massa considerável de brasileiros desencavou, em algum lugar, a fórmula do anestésico usado na época da ditadura.

Como é possível andar por aí fazendo de conta que nada está acontecendo quando, em meio ao caos mais completo, o presidente fala que o Brasil está “todo ajeitadinho”? Quando o presidente propõe uma constituinte sem justa causa (e ainda encontra respaldo entre formadores de opinião para a sua “idéia genial”)? Quando o presidente mente sem qualquer pudor sempre que abre a boca — e fica tudo por isso mesmo, porque, afinal, todos já se conformaram com a farsa da traição sem traidores? Como é possível fazer de conta que nada está acontecendo quando o supremo mandatário da Nação, o nosso principal funcionário, encontra apoio moral em José Sarney e Jader Barbalho, faz campanha para Newton Cardoso e para Marcelo Crivella — e continua contando com o apoio de gente que antigamente era (ou se acreditava) de “esquerda”?!
Acho que estou sofrendo da mesma síndrome depressiva pós-Copa do João Ubaldo. Não consigo achar mais nada “normal”, nem na rua nem no noticiário. Tudo fede, tudo está podre, tudo agride a quem ainda tem um mínimo de sensibilidade e de noção daquilo que, antigamente, chamávamos de “valores”. Calçadas esburacadas e “gatos” em todos os postes da Zona Sul, em tese uma área “nobre”; indulto para presos numa data comercial sem qualquer relevância moral ou religiosa; São Paulo transformada em praça de guerra; o Rio na mesma situação lastimável a que já nos habituamos.

Já nos habituamos? Não, sinto muito, eu não consigo me habituar.

Eu também quero uma pílula azul para andar por aí fazendo de conta que nada está acontecendo, para esquecer a corja a que estamos entregues, para parar de chorar de raiva e de impotência pelo assassinato daquele pobre rapaz português que viajava tão contente com os pais.

Quero uma pílula azul para perder a vontade de escrever para todo mundo, AOS GRITOS: “Fujam daqui, não venham para cá, não ponham os pés neste país sem lei, sem justiça, sem vergonha na cara!”

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