O Globo |
1/8/2006 |
Na semana passada, escrevi sobre um menino pobre que fazia malabarismo na rua, diante de meu carro e muitos se emocionaram, em cartas, emails. Gosto do texto — é bom, mas tive uma sensação de culpa por fazer sucesso com a miséria dos outros. De certa forma, eu lucrei. O menininho malabarista (onde estará ele agora?) enobreceu-me. Ou seja, miséria dá lucro. Falar da miséria nos alivia porque para nós, os bacanas, a miséria é apenas um problema existencial. Na verdade, para entendermos o horror que nos envolve, há que analisar os que “não” são miseráveis, os ricos, as classes médias, a estrutura do país, a formação torta do Estado. E não basta a velha tese da “injustiça social”. Temos de entender como a miséria está “dentro” de todos nós, como ela se entranha em nosso egoísmo, na busca maníaca de felicidade e prazer, em nossa fome de consumo, na angústia, amores e sexo. Ali, no carro blindado, diante do menino, tinha de analisar a mim mesmo; eu faço parte da miséria. Onde estava a miséria em mim, naquela noite? Estava no fato de eu ter carro? Não. Mas talvez estivesse na blindagem, não do carro, mas, na blindagem de nossos corações contra o lado de fora da vida. Não basta sofrermos com o “absurdo” da miséria. Ela é uma construção minuciosa por um sistema complexo. A miséria não é absurda, é uma produção. A miséria está na alma dos que se lixam para ela, mas também está naqueles que se acham seus proprietários, que a consideram seu latifúndio ideológico. A miséria dá a eles o alívio hipócrita de serem “contra” ela. Transformar a miséria em bandeira política, sem entender o conjunto que nos inclui, é uma atitude miserável e dá nos vexames a que temos assistido neste governo. Há alguns anos, a miséria era vista com vagos sentimentos caridosos. Ela era até idílica, nas “favelas dos meus amores”. Tolerávamos tristemente a miséria, desde que ela ficasse longe, quieta, sem interferir na santa paz de nosso escândalo. A miséria tinha quase uma... “função social”. Mas o tempo passou e a miséria cresceu — a espuma no champanhe do progresso sujo do país. Com o avanço tecnológico, a indústria de armas, as drogas, a telefonia, a internet, a miséria foi tocada pela evolução do capitalismo e começou a se modernizar. A violência é até um “upgrade” na miséria. A violência nos pegou de surpresa e por isso está sendo combatida com velhas armas e atitudes velhas. Ninguém sabe o que fazer com a neomiséria. Antes, os governantes oscilavam entre a repressão sangrenta, como a queima de favelas ou a construção de guetos. Mas hoje, a miséria é grande demais para ser erradicada. A miséria está nos “sanguessugas”, está nas emendas do orçamento, está na sordidez do sistema eleitoral, está na falsa compaixão dos populistas, está nas caras cínicas, torpes, “lombrosianas” dos ladrões congressistas , está na Lei arcaica e sem reformas, está na atitude olímpica e gelada dos juristas impassíveis , está nos garotinhos na rua e nos garotinhos da política. Somos vítimas da miséria, pelo avesso. Somos miseráveis porque poderíamos ter um país muito melhor e não sabemos fazê-lo; somos miseráveis porque até os ricos poderiam lucrar com a justiça social, mas eles só pensam a curto prazo; somos miseráveis na alma, em nossa amarga alegria, em nossa ignorância, em terrores noturnos, em síndromes de pânico, em nossas noites vazias ou nos bares ameaçados, nos perigos das esquinas, em amores despedaçados, em nossa impotência; a miséria está no esforço para esquecê-la, no narcisismo deslavado que aumenta entre as celebridades, na ridícula euforia das sacanagens e nas liberdades irrelevantes. A miséria está até na moda — vejam este texto de um catalogo “fashion”: “Use uma calça bacana, toda desgastada, bata na calça com martelo, dê uma ralada no asfalto, ou esfregue a calça com lixa, ou por fim, atropele seu jeans, passe por cima dele com o carro (blindado?). A moda pede peças puídas, como ficam depois de um ataque das traças ou baratas. E se você tem algo a dizer sobre a vida, diga com sua camiseta, nas estampas com frases no peito...” Antes, só falava de miséria quem não era miserável, em fome quem comia bem. Agora, os miseráveis nos olham e nos criticam. Antes, não víamos os miseráveis. Hoje, o menino-malabarista quer ser visto. Não se esconde pelos cantos mendigos. Ele se exibe e isso é que nos dói. E ele é uma exceção pacífica. A outra maneira de aparecer é pela violência. A neomiséria cria medo em nossas elites desatentas e grita que nós é que temos de nos reformar. Hoje, não tem mais jeito; a miséria tem de ser integrada a nossas vidas. E o primeiro movimento é entendermos a própria lepra. A miséria nos obriga a uma autocrítica, para além das blindagens; temos de conviver com ela, pois também somos miseráveis. A violência mostra como a estrutura administrativa, social e política é mentira. Assim como a corrupção nos abre os olhos, denunciando a urgência da mudança desse Judiciário paralítico, a miséria e a violência estão provando o fracasso da administração pública. Nesse sentido, a violência é até um “avanço” histórico. A violência é a verdade do Brasil. E mais: os miseráveis não esperam nada de nós ou dos governos. Estão indo à luta. Não resolveremos nada. Eles é que vão fazer isso. E estão se expressando em movimentos de afirmação das periferias, de dentro para fora, como nos trabalhos seríssimos do AfroReggae e em outras ONGs que nos dão uma aula de imaginação, grandeza e eficiência. Os marginalizados vão sair do horror para serem fontes de expressão vital. A miséria está nos modernizando. |
Entrevista:O Estado inteligente
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terça-feira, agosto 01, 2006
Arnaldo Jabor - A miséria está nos modernizando
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