Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 06, 2006

Acordes Daniel Piza Estado



Melomania, digo a um amigo, é a melhor terapia. Mas "mania" não deveria vir com "melodia". Não é qualquer música, não é música 24 horas por dia, que tem o poder de abrir horizontes internos. Não falo da música para acompanhar fossa, esperar ligação, alienar dentista, chacoalhar ossos; tampouco da música como perfeição das esferas ou transporte para o éden. Mas da música como linguagem que é ao mesmo tempo impalpável e fisiológica, abstrata e envolvente, sublime e rasteira, capaz de discurso complexo e falar ao plexo. Quanto mais você aprende sobre música, mais prazer extrai dela - e mais resta a aprender.

Campos do Jordão, mesmo não tão cheia, é um aborrecimento em julho, mas algumas atrações do Festival de Inverno sempre valem. No sábado retrasado ao cair da tarde, vi o Quarteto Borodin no Palácio da Boa Vista, num auditório-capela envidraçado que estava cercado por neblina. Quando o concerto desses russos incrivelmente concentrados terminou, com o quarteto de Schumann para piano (ao qual estava o brasileiro Jean-Louis Steuerman), que se seguiu ao quarteto nº 11 de Shostakovich (tão exato quanto belo, como o longo agudo do finale), me dei conta de que ficamos com uma memória do que ouvimos que não é necessariamente a do tema ou de alguns trechos efetivamente ouvidos. É uma espécie de memória indireta, de segunda voz, que permanece quando o silêncio se instala. Com grandes romances acontece o mesmo: lembramos duas ou três cenas, esquecemos as restantes, mas conosco fica um murmúrio único.

Foi bom também ver, antes de uma entusiástica interpretação da quarta sinfonia de Tchaikovsky, O Pássaro de Fogo, de Stravinsky, pela Orquestra Acadêmica regida por Roberto Minczuk na sexta à noite. Que uma orquestra quase toda de estudantes consiga atravessar quase sem problemas uma peça tão sutil e rítmica - a combinação essencial de Stravinsky - é admirável. Por sinal, o segundo volume da biografia escrita por Stephen Walsh acaba de ser publicado nos EUA (Knopf). No New York Review of Books Michael Kimmelman, que é originalmente crítico de arte do New York Times (no Brasil seria "absurdo"), escreve que quando Stravinsky morreu, em 1971, George Perle observou que "o mundo estava sem um grande compositor pela primeira vez em 600 anos". Sim, temos Arvo P‰rt, John Adams e alguns mais. Mas a frase tem algum sentido.

No saguão do auditório Cláudio Santoro, bons DVDs e CDs estavam à venda. Alertado por João Marcos Coelho, agora editor da versão brasileira da revista Diapason (que tem excelente material sobre Villa-Lobos na capa do terceiro número), comprei um dos 20 CDs da coleção da Harmonia Mundi, Uma História da Música, muito bem feita. Escolhi o 11º, A Revolução do Barroco Italiano, para seguir o nascimento de gêneros como a ópera e da sinfonia.

Comprei também o DVD de A Flauta Mágica, de Mozart, regida por James Levine em 1991. O cenário, de David Hockney, tem aquele jogo cartunesco de perspectivas que o caracteriza e que combina com a ópera. No elenco, entre outros, estão Luciana Serra, como a Rainha da Noite, uma jovial Kathleen Battle e o grande barítono Kurt Moll. É excelente. Indo além do estilo italiano que conhecia e apreciava, Mozart dá jeito de sinfonia à ópera, entrelaçando as vozes e conferindo a elas o poder de instrumentos, como nas árias mais conhecidas, onomatopaicas, mas também nos coros e recitativos. À maneira de Shakespeare, Mozart não fazia distinções entre o alto e o baixo.

No bom ensaio recente de Alex Ross sobre os 250 anos de Mozart, publicado na revista The New Yorker e que pode ser encontrado no blog do crítico, http://www.therestisnoise.com, ele cita uma frase de Charles Rosen sobre a textura contrapontística da música de Mozart que permite superpor quatro ritmos de modo "ao mesmo tempo complexo e tocante". Tal definição vale para as óperas e tudo o mais de Mozart, felizmente visto cada vez menos como menino-prodígio. O gênio fica lá onde já não importa o quanto do talento é dom e o quanto é conquista, onde intuição e sofisticação são uma força só.

Esse, por sinal, é o mundo de Thomas Bernhard. Vejo com espanto o interesse pela segunda edição de O Náufrago (tradução Sérgio Tellaroli; Companhia das Letras) e não sei se atribuo ao crescente interesse por música em certos círculos ou pela obra de Bernhard depois de seis títulos lançados aqui. Só sei que o livro é estupendo (tem um correspondente no mundo da pintura, Old Masters, ainda não editado em português, sobre um sujeito obcecado por Ticiano) e fala de Glenn Gould como nenhuma biografia ou ensaio: "Ele se recolhia dentro de si mesmo e começava a tocar. Tocava de baixo para cima, por assim dizer, e não como os outros"; "Somos os que continuamente buscam escapar da natureza, mas, como é natural, não conseguimos, (...) ficamos no meio do caminho"; "A maestria não lhe bastara nem mesmo quando criança."

Numa vida de náufragos e mal-entendidos, de pessoas frustradas e preconceituosas, o gênio não é o virtuose, que se exibe para os outros, mas aquele que sobrevive a tudo isso. Gould tocando as Variações Goldberg de Bach é a melhor definição musical do que é música, uma matemática que supera suas próprias equações.

Música é conectar, não compartimentar; não deve ser reduzida a gêneros ou quantidades. Bill Evans tocou no Steinway de Gould, e Brad Mehldau é o Bill Evans da nova geração. Dois CDs seus acabam de sair: House on Hill, de composições próprias, e Love Sublime, com a cantora Renée Fleming. O primeiro é muito interessante, uma proposta de jazz que não se funde com, mas se abre para o erudito e o pop; as improvisações não desfiguram a melodia, primeiro apresentada da forma mais concisa e depois desdobrada até se reencontrar. O segundo, que apenas comecei a escutar, é nada menos que canções feitas com poemas de Rainer Maria Rilke.

Thom Yorke, do Radiohead, grupo do qual Brad Mehldau já interpretou diversas canções, lançou seu disco solo, The Eraser - controverso na crítica, o que não surpreende, e sucesso de público, o que surpreende. Foi saudado como volta à eletrônica de Kid A, mistura de sintetizadores e "riffs" com a voz melancólica de Yorke. Mas ele não quer saber de ritmo dançante, se queixa das mentiras da política e, como Melhdau, jamais se esquece da melodia; alguns momentos, especialmente a faixa Analyse, têm a textura de Hail to the Thief, o último da banda, de uma inteligência sonora e verbal rara no pop.

Melodista de primeira era também Luiz Bonfá, cujo CD Solo in Rio, lançado nos EUA em 1959 com o título O Violão de Luiz Bonfá, foi remasterizado agora. São variações em torno de canções e ritmos brasileiros, americanos, hispânicos. A segunda versão de Manhã de Carnaval (faixa 25) - melodia que só tem rival em O Bem do Mar, de Caymmi, e Insensatez, de Tom Jobim - é encantadora, com um dedilhado que, em vez de quebrar, acentua a continuidade dos acordes, essa ondulação triste-alegre de suas notas prolongadas.

Estudei piano e violão e abandonei ambos em menos de dois anos. Tinha justificativas práticas ou circunstanciais até há pouco. Mas agora vejo a melhor desculpa: gosto muito de música para tolerar que não fosse bem tocada.

Elisabeth Schwarzkopf morreu na quinta passada, aos 90 anos. Durante um período eu só conseguia ouvir seu CD com os últimos "lieder" de Richard Strauss, de uma densidade lírica impressionante. Foi uma espécie de... mania.

MAIS LÁGRIMAS
Para João Alexandre Barbosa, professor e crítico literário, que deixou livros como A Imitação da Forma e A Biblioteca Imaginária, principalmente boas análises sobre poetas brasileiros como João Cabral de Melo Neto. E para Pierre Vidal-Naquet, mitólogo, autor de Mito e Tragédia na Grécia Antiga e O Mundo de Homero, erudito de escrita agradável.

RODAPÉ
Vejo na Entrelivros uma enquete sobre o livro de Jorge Amado preferido pelo leitor. O resultado vai um pouco contra a tese de Ana Maria Machado em Romântico, Sedutor e Anarquista (Objetiva), para quem não é verdade que seus melhores livros são os primeiros. A enquete, na quinta-feira, dava Capitães da Areia disparado com 45%, muito mais que Gabriela, Tieta ou Dona Flor, famosos por adaptações em cinema e TV. É o livro que quase todo mundo leu na escola, e ninguém esquece cenas como a do estupro na praia. Amado tinha uma facilidade incomum entre escritores brasileiros para criar tipos críveis e fazer a história correr. Mas depois foi perdendo em auto-repetição e na ideologia sentimental. Meu preferido, que ficou em segundo com 13%, é Quincas Berro d'Água, o mais anticonvencional e divertido.

POR QUE NÃO ME UFANO
Não é curioso que, em meio à hemorragia de denúncias comprovadas contra parlamentares e membros do Executivo no esquema Sanguessugas, o presidente Lula venha falar em reforma política e assembléia constituinte, como se dissesse que o problema está nas regras e não nas pessoas?

Aforismos sem juízo
O problema maior não é agarrar-se a uma mentira. É agarrar-se a uma parcela pequena e conveniente da verdade.

Arquivo do blog