Folha de S. Paulo
19/6/2006
Novo embaixador diz que investimento em infra-estrutura leva tempo
para ser concretizado e reclama de salvaguardas
DONO DE UM português impecável e com experiência de dez anos no
Brasil, o novo embaixador da China no país, Chen Duqing, 59, é um
entusiasta da globalização e dos efeitos da concorrência sobre as
empresas. Integrante da primeira missão que negociou o reatamento de
relações diplomáticas entre os dois países nos anos 70, já viveu em
São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. "O Brasil é o maior produtor de
café do mundo, só que os americanos vendem mais café na China", lamenta.
Chen Duqing afirma que o Brasil é menos aberto que seu país e que o
mundo não deve temer a concorrência chinesa. "Alguns só querem
globalizar os outros, não querem ser globalizados", diz, citando o
brasileiro Jório Dauster. A seguir, trechos da entrevista, concedida
na Embaixada da China em Brasília.
FOLHA - O que mudou na relação Brasil-China desde a primeira vez em
que o sr. esteve aqui?
CHEN - O estabelecimento das relações diplomáticas, em 1974, foi uma
decisão de grande visão. Mas naquele momento as circunstâncias não
permitiam, tanto do lado de cá como do lado de lá, que as relações se
desenvolvessem com ímpeto. A China estava mergulhada na Revolução
Cultural e aqui havia certa suspeita de que a China poderia exportar
a revolução para cá. As relações evoluíram muito e basta citar o dado
do comércio. Em 1974, o comércio bilateral era de apenas US$ 17,4
milhões. No ano passado, segundo nossas estatísticas, ele pulou para
US$ 14,8 bilhões. Mesmo pela aduana brasileira, o valor superou US$
12 bilhões. A parceria estratégica entre os dois países já não é
abstrata e a cooperação ocorre em todos os segmentos. O acordo para
satélites é uma cooperação exemplar entre dois países em
desenvolvimento.
FOLHA - Em 2004, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
visitou a China e o presidente Hu Jintao veio ao Brasil, falou-se
muito de investimentos da China no Brasil. Por que eles não se
concretizaram?
CHEN - Projetos de infra-estrutura têm seu processo, que começa com o
estudo de viabilidade, estudos comparativos e análise das condições
de cada projeto. Acho que os amigos brasileiros são muito ansiosos
por um lado e imediatistas por outro. Na China, temos planos de longo
prazo. Mas há uma coisa que todo mundo conhece que é o custo Brasil,
que o brasileiro entende melhor do que eu. Outra coisa que gostaria
de mencionar é que, em termos de abrir sua economia, o Brasil está
atrasado em relação à China.
FOLHA - O Brasil é menos aberto?
CHEN - Menos aberto. A China recebe anualmente US$ 60 bilhões de
investimento estrangeiro direto. O Brasil não está conseguindo. A
economia, cada vez mais, é globalizada. Uma coisa que eu noto é que o
milagre brasileiro, do fim de 60 e meados de 70, já foi. A infra-
estrutura era muito bem vista e, agora, se mostra obsoleta.
FOLHA - Já na China...
CHEN - Está muito avançada. A China poderia ser um bom parceiro em
grandes projetos. Precisa talvez do trabalho conjunto dos dois
empresariados e do estímulo dos governos. Eu gostaria de lembrar que
a Sinopec [estatal chinesa de petróleo] ganhou a licitação para o
primeiro trecho do Gasene [gasoduto que ligará o Sudeste ao
Nordeste]. E o Banco de Exportação da China está disposto a financiar
o restante da obra. A China não está falando por falar. Quando
falamos de financiamento, temos de discutir os termos e isso leva
tempo. Não se passaram nem dois anos da visita dos dois presidente em
2004.
FOLHA - O sr. assume quando crescem as críticas à China dos
empresários brasileiros, que pedem salvaguarda contra produtos chineses.
CHEN - Quando falamos de globalização eu me lembro de uma frase do
embaixador Jório Dauster, de que alguns só querem globalizar os
outros, não querem ser globalizados. A globalização é uma faca de
dois gumes. Exportação e importação têm dois lados. Como a taxa de
câmbio: quando muda, tem dois sentidos. Quando cresce a favor da
moeda nacional, dificulta a exportação e facilita a importação.
Quando a China entrou na OMC [Organização Mundial do Comércio], houve
pressões e tivemos que fazer certas concessões. Nós entendemos que as
salvaguardas devem ser aplicadas em último caso. Nas trocas
bilaterais, o Brasil é superavitário. Para um país com superávit, é
até estranho acusar o outro lado de fazer dumping. Mesmo que houvesse
dumping, vamos fazer um inquérito, o que é natural. Mas não se pode
usar a salvaguarda como uma espada de Dâmocles pairando acima da
cabeça: "Se você fizer isso, eu vou...". Isso não ajuda nada.
FOLHA - A eventual aplicação de salvaguardas pode prejudicar o
relacionamento bilateral?
CHEN - Acho que não. Mesmo se houver a aplicação, isso implica um
processo de investigação. Não é uma coisa imediata. Agora, os
empresários brasileiros querem vender mais produtos manufaturados
para a China. Só que tem que ver. Antigamente, a China não produzia
carros e comprava muitos do Brasil. Agora, a China já produz carros.
Como vai importar? Mas auto-peças, os dois lados fornecem um ao
outro. Antes comprava cinescópio, TV. Agora a China fabrica
cinescópio e televisões de plasma de primeiríssima qualidade. A China
está evoluindo.
FOLHA - A China produz quase tudo com preços competitivos. Existe
algum produto manufaturado que o Brasil possa vender para a China?
CHEN - No mês passado eu estive em São Paulo em um jantar com o
presidente da Abimaq [Associação Brasileira da Indústria de Máquinas
e Equipamentos], Newton Mello, e ele me disse que as máquinas de
maior valor agregado são vendidas para a China, no valor do que o
Brasil importa da China. A China vende em maior quantidade, por preço
mais baixo, e o Brasil vende menor quantidade, por preço mais alto.
Neste mês, a Abimaq vai abrir um escritório na China. Ela não vai só
comprar, vai vender também. Esse é o caminho a seguir. Das 500
maiores multinacionais do mundo, 90% têm filiais na China. Às vezes,
não é o produto chinês que está sendo vendido para o mundo. São
multinacionais. A China só fica com uma pequena parte de mão-de-obra.
FOLHA - Mas agora a China está registrando superávit com o Brasil.
CHEN - Durante 32 anos, a China só teve superávit em quatro ou cinco
anos. O superávit atual é momentâneo. O dólar baixou, o real ficou
mais forte e ficou mais fácil importar. A China não está vendendo à
força. São importadores brasileiros que estão querendo comprar mais.
Até o fim do ano, a China vai comprar muito [do Brasil].
FOLHA - Qual a importância da América Latina para a China?
CHEN - A nossa política externa tem alguns lemas. É evidente que os
grandes países são importantes. Mas os países em desenvolvimento são
a base do nosso serviço diplomático. A América Latina, no nosso
tabuleiro de relações comerciais, ainda não tem o peso que deveria
ter. Existe grande espaço para que a China trabalhe junto com os
países da região. Talvez isso desperte receio infundado em alguns
países que acham que a América Latina está em sua área de influência.
Mas esses são conceitos antiquados. Com a globalização, você tem toda
a liberdade de se movimentar, de fazer negócios. O comércio entre a
China e a América Latina está em torno de US$ 40 bilhões. Tem de
aumentar muito. O comércio entre a China e o Brasil, pela nossa
estatística, foi de US$ 14 bilhões, que é só 1% do comércio exterior
da China. O Brasil é o maior produtor de café do mundo, só que os
americanos vendem mais café que o Brasil na China. Eles investiram na
propaganda. Todo mundo sabe que o café brasileiro é bom. Se o café
puder entrar na China da mesma forma que o futebol, que chega ao
coração do chinês, vai ganhar muito.
FOLHA - É justificada a preocupação dos EUA com a aproximação entre
China e América Latina?
CHEN - Não. A presença cada vez maior da China na América Latina só
vai trazer benefícios para a estabilidade econômica. A China não tem
pretensões hegemônicas, militaristas, nada. A China só quer um
ambiente propício para a própria construção econômica do país.
FOLHA - Não são apenas empresários brasileiros que temem a China. A
concorrência do país desperta receio em empresários de todo o mundo.
Como a China vai lidar com isso?
CHEN - Para mim, é uma questão de falta de conhecimento. Entre a
China e os Estados Unidos, as relações comerciais são ótimas. A China
vende muito, mas compra muito também. Do superávit que a China tem
[com os EUA], 85% é feito pelas multinacionais americanas.
A China fica com uma fatia muito pequena. A maior parte do lucro está
no bolso das multinacionais americanas. Não há razão para ficar
assustado. Os consumidores norte-americanos pouparam mais de US$ 600
bilhões nos últimos anos com as importações da China. Essa
complementariedade é benéfica para os dois lados.
A China também enfrenta desafios, comprando produtos agrícolas e
outros e isso nos obriga a reestruturar nossa indústria, recapacitar
nossos agricultores. É um desafio, que você é obrigado a trabalhar.
Competição e concorrência, no seu sentido mais amplo, são muito
saudáveis. No passado, os Estados Unidos tiveram medo da concorrência
japonesa na produção de aço.
Agora, produzem muito aço e não temem mais a concorrência japonesa.
Os americanos conseguiram virar a situação. O empresariado brasileiro
também pode fazer o mesmo.
Embaixador tem dez anos de Brasil
Chen Duqing começou e deve terminar sua carreira diplomática no
Brasil. O país foi o primeiro onde ele serviu, em 81, quando
trabalhou na Embaixada da China em Brasília. Agora, deve se aposentar
depois de comandar a mesma embaixada.
De seus 34 anos de carreira, Chen passou 15 fora da China, 10 dos
quais no Brasil. Acompanhou de perto momentos cruciais do país, como
a morte de Tancredo Neves, em 1985, e o congelamento da poupança no
governo Collor de Mello, em 1989.
A passagem por Brasília durou até 1985, quando ele assumiu o posto de
cônsul-geral-adjunto em São Paulo. Entre 92 a 94, voltou a Brasília,
para o posto de conselheiro, o segundo mais importante da embaixada.
Retornou à China e assumiu, em 1998, o consulado de seu país no Rio.
Antes de voltar novamente ao Brasil, foi embaixador da China em
Moçambique e Timor Leste.