Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, abril 14, 2006

VEJA Entrevista: Bernard Devauchelle


A outra face

Pioneiro do transplante que deu um
novo rosto a uma francesa, o cirurgião
conta como foi a operação


Bel Moherdaui

A cena já foi vista inúmeras vezes na ficção, com variados graus de fantasia: o vilão entra na sala de um cirurgião plástico clandestino e sai com um rosto inteiramente novo. Pois o que parecia absurdo foi realizado em novembro do ano passado pelo cirurgião francês Bernard Devauchelle, à frente de uma equipe de mais de cinqüenta pessoas. O primeiro transplante parcial de rosto da história da medicina beneficiou Isabelle Dinoire, que, na descrição do próprio Devauchelle, vivia uma "vida de monstro", com um buraco onde antes existiam lábios, queixo e nariz, arrancados por seu cachorro enquanto jazia inconsciente no chão de sua casa. Hoje, Isabelle, 39 anos, divorciada, duas filhas adolescentes, já pode trabalhar, fazer esportes e sair à noite para beber. Do cigarro, está largando, sob a branda sugestão dos médicos. "De um dia para outro, nós demos a ela a possibilidade de viver", diz o orgulhoso cirurgião, chefe do departamento de cirurgia maxilofacial do Hospital Universitário de Amiens. Do hospital, na França, Devauchelle falou a VEJA por telefone.  

Veja – Os leigos são obcecados pelos problemas de identidade que um transplante de face poderia trazer. Qual o ponto de vista dos médicos?
Devauchelle – O rosto ainda é um componente importante para identificar um indivíduo, mas acredito que, pouco a pouco, estamos passando da época da antropometria para a época da genética. Em outras palavras, temos uma identidade pela face, mas ao mesmo tempo temos uma verdadeira identidade no plano genético. No entanto, em termos de transplante essa questão de identidade não se coloca, porque não há semelhança com o rosto da doadora nem com o da receptora.  

Veja – É um terceiro rosto?
Devauchelle – Não acho que podemos falar de um terceiro rosto. Existe um episódio descrito por Freud, quando estava em um trem indo para Viena: ele descobre um rosto na janela do trem, e era seu próprio rosto. Acho que nós descobrimos o nosso próprio rosto no decorrer do tempo. No caso da paciente, ela não tinha mais rosto. Com o transplante, ela reencontrou um, que hoje é o dela, ainda que um pouco diferente. O rosto que ela tinha antes não é o elemento importante. O que importa é ela.  

Veja – O que o novo rosto tem de semelhante com o da doadora?
Devauchelle – Nada. Se observarmos fotos da doadora, veremos que não há nada que se assemelhe ao rosto atual da transplantada.

Veja – Se fosse feito um transplante completo de rosto, e não parcial como esse, o resultado final seria semelhante ao rosto da doadora?
Devauchelle – Há duas equipes nos Estados Unidos que trabalharam muito sobre esse tema, e o resultado é bastante interessante. Eles transplantaram rostos inteiros sobre outros esqueletos, e em todas as vezes ocorreu alguma modificação. Isso acontece porque o rosto é pele e músculo sobre ossatura, mas é também uma coisa que está em movimento permanente. A expressão faz parte do rosto. É ela que forma a identidade.  

Veja – Quer dizer que jamais será possível, por exemplo, transplantar o rosto de uma beldade do tipo de Gisele Bündchen em outra pessoa e ela ficar com aparência idêntica?
Devauchelle – Não há nenhum risco de identificação ou de semelhança, e nisso todos os cirurgiões estão de acordo.  

Veja – Para que um transplante de rosto dê certo, o que deve combinar entre o doador e o receptor?
Devauchelle – Há uma série de condições imunológicas que fazem com que um transplante funcione melhor do que outro. O tipo sanguíneo e o fator Rh naturalmente são importantes e são análises feitas antes do transplante. Além disso, quando se faz transplante de uma parte do rosto, é preciso que haja semelhança entre a espessura, a idade, a cor e a granulação da pele. É por essa razão que, embora tenha sido enviada uma foto da doadora antes do transplante, a operação só começou realmente depois que ela foi vista e tocada. Se houvesse algum elemento de incompatibilidade, não teríamos feito o transplante. É essencial que o médico não só veja como também toque tanto o receptor quanto o doador.  

Veja – Alguns críticos chegaram a dizer que o senhor e sua equipe se apressaram na escolha das candidatas para poderem ser os primeiros a realizar esse tipo de cirurgia. Como o senhor responde a isso?
Devauchelle – A maioria das críticas estava ligada a manifestações de inveja. As pessoas que criticaram e até os filósofos que têm debatido isso na França não se deram ao trabalho de discutir o assunto conosco e certamente não viram a paciente antes do transplante. Se tivessem visto, tenho certeza de que não teriam feito esses comentários. Aconteceu um fenômeno curioso na França: assim que as fotos da paciente apareceram em uma grande revista, as críticas cessaram.  

Veja – Por que o senhor decidiu partir direto para um transplante, sem antes tentar uma cirurgia reparadora?
Devauchelle – Você aceitaria que eu lhe fizesse quatro ou cinco intervenções cirúrgicas, recolocando pedaços de carne e osso, para mais tarde remover tudo e fazer o transplante? Do ponto de vista ético, não sei se seria aceitável.  

Veja – Isabelle Dinoire tinha o rosto destruído. Eventualmente, haverá pacientes que queiram fazer o transplante simplesmente para ficar mais bonitos. Seria aceitável?
Devauchelle – Em primeiro lugar, a cirurgia requer autorização. Existem leis aqui na França que dizem se temos ou não o direito de realizar esse tipo de cirurgia. Para nós, a autorização só saiu depois de quatro meses de debates e justificativas. Não há hipótese de ela ser dada para um caso que não seja extremamente grave.  

Veja – Quais as novas técnicas cirúrgicas, ou outras, que não existiam antes e que passaram a permitir o transplante de face?
Devauchelle – Tecnicamente não há nenhuma inovação cirúrgica há 25 anos. Nós fazemos microcirurgia reconstrutora há mais de trinta anos. Os progressos não são de natureza cirúrgica, mas de ordem organizacional e imunológica. O grande progresso é a capacidade que temos de fazer esse tipo de cirurgia com muita segurança.  

Veja – Qual a maior dificuldade, do ponto de vista técnico, de um transplante de rosto?
Devauchelle – No caso específico deste, o mais difícil foi reparar e suturar os vasos que haviam sido danificados pelas mordidas do cão. No geral, a dificuldade está ligada à organização de todos os detalhes envolvidos, à coordenação do tempo de todas as fases. Embora o ato cirúrgico propriamente dito seja longo e minucioso, já estamos acostumados com isso.  

Veja – A doadora estava em Lille e a receptora em Amiens, a 135 quilômetros de distância. Como foi a organização do transplante?
Devauchelle – As coisas se desenrolaram como nós tínhamos previsto. Assim que soubemos que tínhamos uma doadora em potencial, o conjunto das equipes foi chamado; a decisão de fazer o transplante foi tomada quando eu, pessoalmente, vi a doadora e a qualidade da pele dela. Naquele momento, começou a segunda fase do processo, no hospital onde estava a receptora. Tudo aconteceu entre meia-noite de sábado para domingo e 4 horas da tarde de domingo.  

Veja – Uma equipe de mais de cinqüenta pessoas participou da operação. O que o senhor fez pessoalmente?
Devauchelle – É preciso reforçar que entre essas pessoas havia quatro cirurgiões seniores. Dois fizeram a coleta (o chefe da clínica e eu mesmo) e outros dois, mais minha assistente, prepararam a receptora. Eu voltei com a coleta domingo às 6 horas da manhã. Durante a cirurgia, repartimos o trabalho: eu fiz as suturas vasculares e os outros dois fizeram a sutura dos nervos. Nós três terminamos ao mesmo tempo. É um trabalho de equipe.

Veja – O paciente que passa por um transplante de rosto precisa tomar remédios para evitar a rejeição durante toda a sua vida e ainda assim está suscetível a infecções e câncer. Vale a pena?
Devauchelle – Todos os riscos foram muito pesados e discutidos. Mas é verdade: a paciente pode manifestar sinais de rejeição daqui a um ano, cinco anos, seis anos; enfim, não se sabe. O que é preciso dizer é que cada dia ganho é um dia de felicidade para ela, mesmo com os remédios que tem de tomar.  

Veja – Qual é a avaliação final de todo o processo de transplante?
Devauchelle – Eu fixei um prazo de seis meses para dizer se o sucesso foi absoluto do ponto de vista cirúrgico. Temos confiança suficiente para poder declarar, antes mesmo do fim do prazo, que se trata de um sucesso muito grande.  

Veja – Quando ela estará totalmente recuperada e pronta para uma vida normal?
Devauchelle – Ela já tem uma vida normal. Faz tudo o que quer. Pratica esportes, sai, pode trabalhar. Pode fazer absolutamente tudo o que quiser.  

Veja – Antes da cirurgia, Isabelle chegou a pedir alguma melhora no próprio rosto?
Devauchelle – Quando você tem um buraco no meio do rosto, quando você é um monstro, tudo o que quer é ter um rosto, nada além disso. De qualquer maneira, no plano estético o resultado é muito bom. Hoje ela está como você e eu, apenas com algumas cicatrizes a mais, que são quase invisíveis.  

Veja – Na mais banal cirurgia plástica de rosto, os médicos insistem que o paciente não pode fumar. Aparentemente, o senhor e outros médicos foram lenientes com o tabagismo de Isabelle. Por quê?
Devauchelle – Houve um trabalho há alguns anos sobre os efeitos do tabagismo em pacientes com infarto do miocárdio e ficou decidido que o fumo é muito ruim para o coração. Houve outro trabalho que disse o contrário: se o tabagismo diminui o stress e o stress aumenta o risco de infarto, há um equilíbrio em relação a seus efeitos. Se você libera o cigarro e a paciente se sente bem, talvez não seja tão grave. Essa questão do tabaco é uma polêmica sem conclusão. De toda forma, ela está parando de fumar. Nós conversamos muito – ela só fumava um cigarro de vez em quando e agora está tentando parar.  

Veja – Ela alterou algum outro hábito em decorrência do transplante?
Devauchelle – Logo depois da operação ela disse: novo rosto, novo penteado. Acho que é um excelente reflexo da cirurgia na vida dela. É preciso entender que ela não teve uma vida de mulher durante seis meses. Ela teve uma vida de monstro. De monstro excluído de tudo. E, de um dia para outro, nós demos a ela a possibilidade de viver. Isso é extremamente forte e importante.  

Veja – O paciente neozelandês que foi submetido ao primeiro transplante de mão passou por grandes dificuldades psicológicas para aceitar o membro que já foi de outra pessoa e acabou pedindo que o amputassem. O que foi feito para evitar que Isabelle vivesse uma situação parecida?
Devauchelle – A preparação psicológica da paciente foi assegurada por três psiquiatras, entre os quais uma mulher, que pouco a pouco a viram evoluir. Teve sessões todos os dias, por seis meses, e também durante todo o período de internação. Ela passou muito tempo reclusa e reclamava de seu caso ser tão público, o que é natural. Nós fomos os primeiros a propor o procedimento, mas passado um tempo ela pediu que fosse feito. A partir do momento em que há uma adesão da paciente a um projeto terapêutico como esse, o risco é nulo. Ela continua a ter acompanhamento psicológico – duas horas, uma vez por semana. Devo dizer que no princípio o que ela mais temia era o rosto dos jornalistas, e não o seu próprio.  

Veja – Antes do ataque do cachorro que a deixou sem parte do rosto, Isabelle tentou o suicídio, como foi aventado?
Devauchelle – Ela explicou isso muito bem na última entrevista coletiva. De fato tomou alguns comprimidos, porque tinha discutido com a filha. Mas os remédios eram para pressão arterial, betabloqueadores.

Veja – E a doadora, cometeu ou não suicídio?
Devauchelle – Não sei. E, se soubesse, não poderia dizer. A lei francesa é muito severa em relação ao segredo profissional.  

Veja – Como é fazer parte da história da medicina? Alguma coisa mudou na sua vida?
Devauchelle – Não mudou nada. Explico: só conseguimos fazer esse transplante porque passamos o tempo observando nossos doentes e andando para a frente, sem voltar para trás. Não somos nós que vamos julgar se amanhã estaremos na história da medicina.  

Veja – Se sofresse um dano grave, o senhor aceitaria um transplante de face?
Devauchelle – Depende muito de quem o faria. Afinal, seria um pouco complicado eu mesmo me operar. Falando sério, se por acaso eu estivesse na mesma situação, levando em consideração os resultados que acabamos de ver, com certeza eu aceitaria.

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