Mauro Chaves
Quando perguntei aos "prefeituráveis", durante a mesa-redonda que fizemos aqui no jornal, quantos anos a população de São Paulo precisaria esperar para poder nadar e pescar no Rio Tietê, senti em quase todos um certo ar de espanto: pareciam estar assistindo a uma típica manifestação de desvairada poesia, de todo alheia aos nossos graves e megalopolitanos problemas, às nossas urgências e prioridades; e, na verdade, em sã consciência, não poderia eu deixar de dar-lhes certa razão, porquanto em face da escassez de recursos com que a próxima (ou próximas) gestão municipal paulistana deverá enfrentar prioridades administrativas essenciais, tais como as relativas a transportes, habitação, saneamento básico, serviços de manutenção de nosso espaço urbano, tendo em vista sustar a rápida e generalizada deterioração da qualidade de vida nesta despencada cidade, o "luxo" de rios despoluídos implicaria soma de recursos de que tão cedo não disporemos.
Se houvesse tais recursos - disse um dos candidatos -, haveria condições técnicas de despoluir os rios paulistanos em oito anos; mas nenhum prefeito, apesar de tal viabilidade técnica, vai ter a coragem política de deixar de investir em outras áreas para investir na recuperação dos rios - disse outro candidato; razão pela qual não haveremos de nadar nem pescar nas águas do Rio Tietê jamais, nunca! - enfatizou um terceiro candidato.
Fico a imaginar, entretanto - pois sonhar não tira pedaço -, o que significaria, para todos os que labutam, suam e sofrem nesta desvairada cidade, conviver com a beleza de rios vivos, em vez do horror desses esgotos a céu aberto, dessas substâncias químicas que são tudo menos água; fico a refletir sobre a influência que isso poderia exercer sobre o ânimo de cada cidadão - pois não são os rios marcos de vida de tantas cidades, especialmente daquelas sem mar?
Há uns seis anos, o engenheiro Klaus Reinach, então presidente da Sabesp, falava do Rio Tietê referindo-se ao que considerava a morte das "águas da história paulista" - que foram o caminho natural dos primeiros bandeirantes, o roteiro das monções que partiam em demanda das minas de Cuiabá (desde 1723) e de imensas faixas de terra que assim se incorporavam definitivamente à base territorial brasileira. O referido engenheiro preparara, na ocasião, um documento chamado Plano de água para São Paulo do ano 2000, em que catalogava todas as fontes existentes nas proximidades da capital - das águas do Piracicaba aos mananciais da Serra do Mar e do Vale do Ribeira - e chegava à conclusão de que, se as águas do Rio Tietê não forem purificadas até o final do século, a cidade terá de construir as estações de tratamento mais caras do mundo (só então existentes, em caráter experimental, nos Estados Unidos), para transformar os esgotos do Tietê em água potável.
Há uns dois anos nos visitou o cientista inglês Derek Hinge, o principal responsável pela recuperação do Tâmisa - que começou a ser despoluído a partir de 1950 e em 20 anos já estava totalmente purificado, com 93 espécies de peixes, inclusive salmão. Referindo-se à possibilidade de recuperação do Rio Tietê, que em muitos aspectos se assemelha ao Tâmisa, que permaneceu um século poluído, dizia Mr. Hinge: "Vocês também vão vencer se continuarem investindo dinheiro para interceptar e tratar esgotos. Sim, pois não há nenhum segredo para conviver em paz com a natureza, não há mistério algum em salvar um rio como este da degradação total."
Já em outubro de 1978 nos dizia algo semelhante o cientista francês Jean-Jacques Laplume, diretor técnico da Societé d'Études Techniques et d'Enterprises Générales: o Tietê poderia ser completamente recuperado em apenas cinco anos, passando a ter suas "águas cristalinas", como o Sena - que já apresentara iguais índices de poluição e agora permite que os parisienses nadem tranqüilamente em suas águas.
É evidente que não seria apenas municipal o problema da recuperação de um rio de 1.130 quilômetros de curso - desde onde nasce, no sítio dos Chaves, município de Salesópolis, na Serra do Mar, até sua foz no Rio Paraná. Entretanto, é em sua extensão de 148 quilômetros dentro de nossa área metropolitana - onde recebe o maior volume de detritos industriais e esgotos domésticos - que este rio, cujo nome em tupi-guarani (Tietê) significa "Rio Verdadeiro, Rio Legítimo", se transforma numa substância pastosa, nauseabunda, fétida, de onde diariamente se desprendem - a poluir ainda mais o ar da cidade - grandes massas de gás sulfídrico, mercaptanas e outros poluentes, extremamente tóxicos e corrosivos. E agora nos afastamos mais de possíveis considerações poéticas...
Sem desmerecer as prioridades imediatas dos "prefeituráveis", não me conformo com o fato de nunca, jamais, poder pescar ou nadar nas águas do Rio Tietê. Fico a refletir se não existem certos valores que se agregam histórica e culturalmente ao perfil de uma cidade; e se um rio que a corta, integrando-se à sua paisagem, oferecendo-se generosamente a seus habitantes, com suas águas cheias de vida, não poderia significar, para os que não vêem o mar com freqüência, um certo alento visual, uma certa purificação de espírito. Pode ser mero sonho, mera poesia. Mas difícil é desistir da idéia de um belo dia podermos vir a pescar naquelas que o engenheiro chamava "águas da história paulista".