Gilberto Dupas
Estão a aparecer sinais inquietantes de tensões contra o aprofundamento da integração européia. Na alma complicada da Europa reaparecem sempre antigas fronteiras, rugas esquecidas e velhas cicatrizes. Afinal, naquele continente, durante séculos, cada canto tinha seu rei; e do outro lado de cada montanha se falava uma língua diferente. Por isso nenhum conquistador se pôde apoderar da Europa de uma só tacada, esbarrava sempre num obstáculo que o fazia perder força e deixava atrás de si comunidades insurretas. Essa é uma boa metáfora para as fortes tempestades que enfrenta o belo e ousado projeto de integração, construído sobre as ruínas e tragédias das duas guerras mundiais.
Primeiro, foi o choque da derrota na aprovação da Constituição Européia na França e na Holanda. A seguir, a desgastante questão da admissão da Turquia, espaço-ponte onde a Europa poderia tentar uma mediação entre o mundo ocidental e o islâmico. A solução de empurrar a decisão por dez anos acabou coincidindo com uma crescente radicalização, que aproxima os países europeus das políticas norte-americanas de combate ao terrorismo, ainda que paradoxalmente cresçam as resistências ao "bushismo" e ao estilo atual de democracia dos EUA. Depois veio o racha alemão, com Angela Merkel assumindo um difícil governo de coalizão. E, recentemente, surgiram mais evidências das dificuldades em avançar nas alterações das normas trabalhistas na Europa. Foram as duras e sintomáticas reações às políticas implementadas pelo governo francês estabelecendo flexibilizações no Contrato do Primeiro Emprego - entre as quais a demissão sem encargos, após 24 meses - o que tem levado às ruas não mais os jovens pobres da periferia, mas os alunos da Sorbonne e outras universidades de elite, transformando o tradicional Boulevard Saint-Michel em palco de barricadas.
Quase simultaneamente veio o agressivo patrocínio do primeiro-ministro Villepin para que o grupo privado Suez - para alguns, em sérias dificuldades financeiras - comprasse a estatal Gaz de France, o que exige mudança de lei. A alegação foi de "alto interesse nacional", já que a "independência energética da França" estaria ameaçada por uma tentativa da empresa italiana Enel de comprar a Suez. O primeiro-ministro italiano Berlusconi ficou furioso, pois não havia feito restrição à compra do Banco Nazionale del Lavoro pelo BNP-Paribas, nem à participação da EDF na Edison. Os analistas europeus alegam que o verdadeiro perigo para autonomia do gás na Europa é a Rússia - de quem ela depende - e que reais sinergias só surgirão fundindo empresas de diferentes países europeus, e não criando uma política de "campeões nacionais". O Le Monde atacou sem piedade, chamando a ação do governo francês de deplorável, protecionista e nacionalista. E arrematou: "Ontem a França disse não à Constituição Européia; agora diz não à Europa-energia."
Já na Alemanha, o país parece aliviado com o perfil sóbrio de Angela Merkel, que nestes primeiros meses tem alternado cautela com firmeza. Mas, se o Le Figaro fala que "Angela completa cem dias em estado de graça", o orçamento para 2006 mais uma vez viola o limite de déficit estabelecido pela União Européia (UE). Fica-se à espera do aumento do Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), promessa de campanha a ser implementada em breve, que regularizaria o buraco. Mas, se a Alemanha precisa sair da recessão, como fazê-lo com mais imposto? Os alemães ainda vêem Angela Merkel como símbolo de uma aliança nacional que ache - e implemente - uma solução, via reformas que doam pouco. Só que ninguém sabe como operar essa mágica. Mas, se há impasses nas questões internas, na área externa Angela Merkel tem marcado presença. Seu estilo reflete as contradições da coalizão que dirige. Foi a Paris, prometeu a Chirac boa relação com a França, mas ressaltou a não-exclusividade. Em Washington lançou bases para uma nova aliança, mas criticou Guantánamo. Falou em parceria na Rússia, mas abordou a Chechênia. E assim foi por toda parte, tentando conciliar a herança diplomática de Helmut Kohl com a de Schroeder, ou seja, a tradição atlantista de aproximação com os EUA com a defesa dos interesses nacionais. Só que 80% dos alemães desaprovam as políticas de Bush.
Angela Merkel flerta com a popularidade enquanto os verdadeiros testes não vêm; na área externa, o primeiro pode ser uma crise no Irã; na interna, será conseguir um consenso sobre que reformas. No entanto, a situação geral da economia européia não ajuda. A Alemanha está parada, França e Itália desaceleram, e os mais otimistas projetam um crescimento da UE de, no máximo, 1,8% em 2006, ou seja, metade dos EUA, que continuam a locomotiva da economia mundial, ajudada pela China. O ressurgimento de teses econômicas nacionalistas e protecionistas, pondo governos a serviço de empresas nacionais em busca de liderança, em nada ajuda o fortalecimento europeu. E evidencia contradições entre a lógica do capital e a dos Estados nacionais eventualmente empenhados no exercício sinérgico de soberanias transnacionais.
Para onde vai, afinal, o projeto europeu? Para alguns, há um defeito básico em nossa análise: estaríamos insistindo em olhar a UE pelos padrões norte-americanos. Jacques Derrida via a força e a riqueza da nova Europa no auto-entendimento histórico baseado na diferença e na heterogeneidade. Mas uma UE sem visão de potência será sempre caudatária e frágil. Houve um tempo de esplendor, quando as indústrias aeronáuticas e militares de vários países europeus se juntaram para construir a EADS (Airbus), hoje líder mundial do setor. Naquele momento a UE parecia ter um projeto de poder. Agora os nacionalismos tomam de novo a cena. Serão eles um empecilho ao aprofundamento da integração?